domingo, 28 de junho de 2009



Another brick in the wall


Foi um momento mágico quando ouvi pela primeira vez este tema dos Pink Floyd. Tinha treze ou catorze primaveras, andava no terceiro ou no quarto ano do ciclo, naquele magnífico liceu de tijolo maciço e tijoleira rendilhada, antes de descermos para Porto de Mós, sobre o qual, ao cair da noite, corríamos e saltávamos como homens-aranha destemidos, eu e dois colegas. (Eu era o Homem-Aranhiço, pois era o mais pequeno dos três; depois seguia-se o Homem-Aranha e a seguir, mais corpulento, o Homem-Aranhão – era assim que nos tratávamos). Pois bem, por iniciativa da escola, tínhamos ido gratuitamente ao circo, se calhar o Cardinali, ou o Chen (se calhar nenhum destes, não me recordo), junto à velha central a carvão, e foi aí que, enquanto esperávamos pelos palhaços e os leões, a música passou, arrebatadora e arrasante, pelos meus ouvidos, vinda dumas colunas enormes a debitar decibéis como cataratas de som. Foi um momento fantástico e indescritível. Todos se levantaram das bancadas e, em coro, acompanharam ruidosamente, demolidoramente:
Hey teacher, leave us kids alone
All in all it’s just another brick in the wall...
Estranho lugar, este, o circo, para ouvir pela primeira vez aquilo que se tornaria o hino de uma geração! Aquele hey teacher dos meninos de coro da Islington Green School tocara-me profundamente, a mim, que ainda não me interessava nada por música e bandas de rock. Foi enfeitiçante e deixou-me sem palavras. Para além disso, enquanto todos cantavam euforicamente, deitava eu a vista a uma miúda de beleza e sorrisos divinais, de hipnotizantes olhos verdes, não muito longe de mim, mas nunca passou disso mesmo, porque eu era ainda o Lequinhas-tem-vergonha-das-meninas..., o aluno bom acima da média, mas tímido, ingénuo e, como sempre, singelamente imaturo... Bom, vi há dias a miúda – era ela de certeza absoluta –, já casada e com filhos atrás, larga de ancas, celulítica e pouco atraente. Mas a música, esse hino, ficou cá dentro, catapulta-me sempre para outros tempos e inunda-me de emoções.
Bravo, Roger Waters e companhia! “The Wall” é o melhor disco do século XX !
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domingo, 21 de junho de 2009




O Rui Herbon – notável Escritor –, no seu blogue Absinto ainutildeambulacaodaescrita.blogspot.com (isto não é publicidade…), decidiu atribuir-me o Prémio Lemniscata, o que é uma honra e um motivo para me esmerar mais no conteúdo.
















Alguns dados sobre o Prémio:
O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogues que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores.

Alguns significados:
Lemniscata: curva geométrica com a forma semelhante à de um 8; lugar geométrico dos pontos tais que o produto das distâncias a dois pontos fixos é constante.
Lemniscato: ornado de fitas; do grego lemniskos, do latim, lemniscu; fita que pendia das coroas de louro destinadas aos vencedores (in Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora).
O símbolo do infinito é um 8 deitado, em tudo semelhante a esta fita, que não tem interior nem exterior, tal como no anel de Möbius, que se percorre infinitamente.

Sendo assim, e dando seguimento às regras do jogo - que é atribuir o Prémio a outros sete blogues -, a minha escolha recai nos seguintes (estão por ordem alfabética):

- aescadadepenrose.blogspot.com (porque é do Rui Herbon)

- agavetadopaulo.blogspot.com (porque se chama Paulo e recebemos um prémio literário juntos)

- ainutildeambulacaodaescrita.blogspot.com (porque também é do Rui)

- comlivros-teresa.blogspot.com (porque tem livros)

- morreremmagenta.blogspot.com (porque me apetece)

- palavrasdecal.blogspot.com (porque sim)

- tantodemimrabiscos.blogspot.com (porque da sua janela vê o castelo)


terça-feira, 16 de junho de 2009

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O fim do nosso mundo...

Perto da casa do Toino tínhamos uma cabana em cima de uma árvore, primorosamente construída com varas de acácia, envolvida de heras que fizeram um belo trabalho de revestimento ao longo dos anos. Era lá que nos juntávamos para estudar matemática; o Toino dava-me explicações, e se tivesse que lhe pagar por isso, não teria dinheiro suficiente. Mas também nos juntávamos lá com o J. e outros colegas para jogar às cartas e outros jogos de rapazes. Havia lugar pelo menos para quatro ou cinco. Uma mesinha, bancos, prateleiras e, num esconderijo, uma apetecível garrafa de vinho do Porto (coisas do J., claro). O interior estava todo forrado com posters de bandas e ídolos musicais da época, tipo Human League, Depeche Mode, Alphaville, Frankie Goes to Hollywood, Orchestral Manoeuvres in the Dark e tantos outros, mas também The Smiths, The Cure, Duran Duran, Bryan Adams, Simple Minds e U2.
Já a mãe do Toino não tolerava muito bem esta decoração, porque dizia que aqueles grupos e aquela música eram coisa de malucos e uma cambada de drogados... Um dia, o J., que era fanático por carros de rally e Fórmula 1 e obcecado por mulheres bonitas, sobretudo se estivessem nuas, teve a brilhante ideia de arrancar todos aqueles posters (com a nossa conivência) e substituí-los por outros: ficámos literalmente rodeados por seios e traseiros luzidios. Silicone por todo o lado. Até no tecto. Recordo-me de uma Pamela Ander-qualquer-coisa... sim, essa!... que tinha uns belos faróis, segundo as palavras do J. Mas a mais surpreendente, de seios descomunais e ao mesmo tempo assombrosos, colada sobre as nossas cabeças como um peso ameaçador vindo dos céus, era uma tal senhora Lolo Ferrari. Credo! Silicone ou não, que perigo, que mamonas assassinas!... Para o J., já não eram faróis, eram airbags! Os airbags da Ferrari!...
Mas um belo dia, porém, a mãe do Toino descobriu que íamos para a cabana estudar matemática rodeados de voluptuosas e devassas mulheres nuas (salvo seja), e arrancou e queimou tudo – ohhh!... – como na fogueira da Inquisição! Ficámos proibidos de entrar na cabana em cima da árvore por muito e muito e muito tempo. Firme e decididamente.
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domingo, 14 de junho de 2009

Água fria

Calcei as minhas botas e saí para a rua como um animal sai da toca, após a longa hibernação. Devia ter os olhos inchados e os cabelos desgrenhados em pé, com ar de louco ou troglodita, mas não havia ali ninguém para me ver. Além disso, estava tudo imerso numa admirável massa nevoenta. O mundo era um oceano de nevoeiro opaco e branco. Uma folha de papel sem um único risco. Soube-me bem espreguiçar demoradamente e olhar tanta água a correr à minha frente. Ali, no riacho borbulhante e a fumegar vapor, parecia cozinhar-se um manjar de pedras, pedrinhas e pedregulhos.
Avancei, agachei-me e afundei as mãos na água. Tão bom, mexer na água fria, vê-la escorrer entre os dedos! A minha vontade era abrir as goelas e deixá-la entrar para dentro de mim, deixar entrar o riacho inteiro e senti-lo gorgolejar nas profundezas das entranhas, deixá-lo purificar e lavar a noite e a náusea da ressaca. Esfregando a cara, senti a barba áspera como lixa número dois, talvez três (pensei na bodega do armazém onde trabalhava), fechei os olhos e enfiei metade da cabeça na corrente de água límpida. Kerouac tinha razão. Não há no mundo sensação que se compare à de lavar a cara em água fria, de manhã, na montanha.
Mantive-me imerso até aguentar; quando retirei a cabeça, estava a Leandra ao pé de mim, envolta no saco-cama, a olhar-me estremunhada com uma careta de arrepio.
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domingo, 7 de junho de 2009

J.N.R.J.

A pouco e pouco entravam mulheres, crianças e alguns homens. Muitos destes ficavam na rua, sentados ao sol nos degraus do pelourinho, debaixo das árvores ou na taberna. A igreja deles era ali e o deus deles era líquido que escorria dos cascos de pinho para a garganta. As pessoas que iam entrando na igreja benziam-se na água benta das pias, à entrada, faziam a genuflexão com o sinal da cruz antes de se enfiarem em fila nos bancos únicos e compridos, ajoelhavam-se, faziam uma breve oração e depois sentavam-se em silêncio.
Em cada lado da igreja, um santo. Esses dois santos mantinham o ar andrajoso e empoeirado de sempre. Um segurava um livro e uma chave; o outro, um livro e uma caveira na palma da mão. Ambos tinham os olhos lisos e pareciam cegos. Assustavam. Mas a Nossa Senhora, vestida de azul e branco, tinha aspecto de lavada e cheirar bem. Heras verdes e tenras, malmequeres e gladíolos às cores escondiam-lhe o pedestal e quase a nuvem branca donde se erguia. Parecia que tinha chovido sobre ela uma chuva de Primavera. Parecia tão fresca. Parecia tão doce, que a minha vontade secreta era cheirá-la e lambê-la como a um chupa-chupa. Bebê-la como água pura da fonte. (Estava com sede e tinha a garganta seca). Aliás, se pudesse beberia todo o interior da igreja. A frescura da pedra. O branco bebível do azulejo. A luz. A luz que inundava a nave. A nave imensa onde podia imaginar pássaros a voar, andorinhas brincalhonas rasando a cabeça das pessoas e o corredor central onde quase tocavam com a ponta das asas.
Malmequeres e jarros de uma brancura imaculada enfeitavam o altar, onde uma almofada sustinha um grande livro de capa vermelha e folhas que reluziam como oiro. Duas velas de tamanho desmesurado, uma de cada lado do altar, ardiam silentemente. Se eu voltasse dali a um mês, ainda estariam a arder, era essa a impressão que tinha. Se voltasse dali a um ano, ainda estariam a arder. Se voltasse dali a um século, ainda estariam a arder.
Enquanto a missa não começava, eu bebia a frescura que flutuava no imenso espaço da nave, e aquele Jesus Cristo de tamanho natural, preso a uma cruz lá no alto, sobre o altar, não mexia uma palha para sair dali. De tanga a tapar-lhe o ventre, coroa de espinhos, rosto descaído, inclinado para a direita, a sangrar, joelhos a sangrar, o flanco também direito com um buraco também a sangrar, mãos e pés pregados na madeira. A sangrar. O corpo belo, musculoso, ossudo, estático, suspenso na sua própria agonia.
J.N.R.J. Sobre a cabeça. Jesus não ri... já... jé... ji... jó... ju... jamais.
Jesus Não Ri Jamais.
Jesus Não Recebe Jorna.
Jesus Não Come Jeleia.
Come não começava por erre. Nem geleia por jota.
Se Jesus fosse um Homem Pássaro, como eu, não teria deixado que o soldado romano lhe espetasse a lança no flanco direito. Ou teria? Nem sequer se teria deixado crucificar. Ou teria?... Fosse como fosse, aquele Jesus parecia-me bastante real. Ainda me recordava da primeira vez que entrei na igreja, já com essa idade dos porquês, e ter ficado intrigado e ao mesmo tempo assustado com aquele homem nu ali espetado na cruz. Num sussurro, perguntara à minha avó se era um homem verdadeiro e ela, noutro sussurro, respondera-me que sim. Sim, é um homem verdadeiro.
Durante toda a missa não despeguei de lá o olhar. Só mais tarde, algumas missas mais tarde, tive consciência que aquele homem, a sangrar e em agonia, era, afinal, uma estátua. De quê, não sabia – mas era uma estátua, e pude suspirar de alívio.
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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ao Homem Metade

Vou contar, muito resumidamente, a história do Homem Metade (era assim que o «tratava» quando pensava nele). Eu tinha onze anos e estava prestes a dar-se a revolução de Abril de 1974 quando passei a conviver mais assiduamente com ele, e não tenho memória alguma de quando ainda era um Homem Inteiro, normal como todos os homens.
O pai dele tinha uma carpintaria. Assim que lá entrava, o cheiro a árvores cortadas invadia-me os pulmões. Era um cheiro a bosques ceifados. Havia pilhas de madeira e montes de aparas por todo o sítio. O chão era de serradura, andava-se ali nas nuvens. Mas uma serra mecânica de lâmina longa, cheia de dentes, lá ao fundo, causava-me arrepios na espinha quando dividia tábuas em duas, muito perto das mãos que as seguravam. Essas mãos já não tinham alguns dedos. A todos os carpinteiros que eu conhecia faltavam-lhe dedos. Ou o polegar e o indicador, ou só a ponta do polegar e o indicador, ou o mindinho e o anelar. Ao pai do Homem Metade faltavam-lhe dois numa mão e a ponta do indicador noutra. Os que ainda sobravam eram quase todos redondos na ponta, como se a pele tivesse sido esticada e presa com pinças, e praticamente sem unhas. E a serra ceifa-dedos zunia ali tão perto deles, faminta. Não me aproximava muito.
Um dia, como sempre, perguntei pelo filho, o Homem Metade. Tinha, agora, mais confiança com ele e passava muito tempo a escutar as suas histórias. Tratava-o por tu. Às vezes falávamos de pássaros, dos de cá e dos que ele vira por África, e às vezes não falávamos de nada, ficava só a vê-lo colar os fósforos queimados, construindo as suas maquetas com muita paciência. O velho disse-me que o filho estava no lugar do costume, e o lugar do costume era uma casinhota nas traseiras da carpintaria, virada para um bosque em cuja clareira passava um riacho e onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa em lajes de pedra. O Homem Metade passava lá dias inteiros, fechado.
Atravessei a carpintaria, os pés sempre sobre o tapete de serradura ancestral. Na casinhota, bati à porta e abri-a sem esperar pela voz de dentro. Era sempre assim que fazia. Entrei e eis o Homem Metade. O Homem Cadeira. O Homem Sem Pernas. O Homem Tronco. O Homem Meio-Homem. De qualquer modo, um Super-homem. Debruçado numa bancada cheia de ferramentas, bocados de madeiras e caixas vazias, colava fósforos na proa de uma caravela.
Lá vem a Nau Catrineta
Que traz muito que contar.
Ouvi agora, senhores
Uma história de pasmar.
Aproximei-me. O Homem Metade esteve três anos na Guiné. Foi para lá (ainda não era Metade) com vinte e cinco primaveras e voltou sem as duas pernas. As duas pernas inteiras, sem tirar nem pôr. Uma bazuca, numa emboscada, tinha-lhe traçado o destino. Oito colegas morreram. Guerra era guerra. Às vezes contava histórias horrendas. O melhor amigo morrera-lhe nas mãos, com os miolos a saírem pela nuca. Viu pessoas queimadas, trucidadas e completamente desfiguradas, sendo impossível reconhecê-las. Um dia cercaram uma aldeia e metralharam sobre tudo que se mexesse. Velhos, mulheres, crianças. Nem o capim ficara de pé. Estavam treinados para matar e estavam a servir a Pátria. Guerra era guerra. Mas agora a sua guerra era outra. Uma guerra surda contra o tempo. Sem as duas pernas, preso a uma cadeira de rodas, a sua guerra travava-se dentro daquela casinhota entre caixas de fósforos, colas e lixas, madeiras finas, pregos e martelos. O dia inteiro fechado. A caravela tomava forma com todos os detalhes. O Homem Metade, pouco falador, olheirento, a barba como um matagal a crescer, tinha jeito para aquilo. Em cima de mesas e prateleiras viam-se a Torre de Belém, o Santuário de Fátima, o Castelo de Porto de Mós, o Castelo de Leiria, o Mosteiro da Batalha e a igreja da aldeia. Tudo em fósforos queimados e com os devidos pormenores. Havia um carro de bombeiros. Uma locomotiva. Um hidroavião semelhante ao de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Bonito. E havia outras maquetas de monumentos que eu não reconhecia de lado nenhum. Perguntei-lhe se a caravela era a Nau Catrineta. E ele: sim, que podia ser.
Pela janela aberta entravam feixes de luz. Viam-se nuvens brancas que eram couves-flor semeadas pelo céu. Fui directo ao assunto que me levava, desta vez, ali: queria uma porção de cola de madeira. Que podia levar a que quisesse, mas era para quê, podia saber?... A ele, não podia mentir. Não era capaz de o fazer ao Homem Metade. Viver agarrado a uma cadeira de rodas para o resto da vida era já um castigo suficientemente grande. Dizer-lhe uma mentira, por mais insignificante que fosse, não fazia sentido. – Vou fazer umas asas – disse-lhe eu, orgulhoso. Era um segredo meu, mais ninguém sabia. Nem os meus colegas da escola.
- Umas asas? De papel, para brincar?
- Não, de penas, para voar como Ícaro – respondi, e o Homem Metade começou a rir-se e fez marcha atrás para alcançar um alicate. Cabeça, tronco e membros sem-membros. Só braços e calças vazias dobradas sobre o assento salpicado de aparas e lascas de fósforos. Eu não me estava a ver sem pernas. Nada de corridas, nada de bola, nada de trepar árvores, nada de nada. Se me chamassem para a guerra, fugiria antes que me ceifassem as pernas.
- Para voar? – o Homem Metade deixou de colar fósforos e fixou-me atentamente. – Sabes que quando tinha a tua idade também pensei nisso? É verdade. Fazer umas asas para voar. O meu sonho era poder voar. Como Ícaro.
- Eu vou fazê-lo – disse, convicto. – Vais ver!
- E vais atirar-te de onde, para poderes voar?
- Ainda não pensei nisso – eu olhava para as maquetas. – Talvez da torre da igreja.
- É o ponto mais alto da aldeia, de facto. Mas não te esqueças que quanto mais alto subires... mais alta é a queda.
- Não tenho medo das alturas – disse eu. – Quero ser aviador, quando for grande, e além disso vou fazer umas asas tão perfeitas como as de um pássaro.
- Vais ser o homem mais famoso da nossa aldeia... – o Homem Metade gozava comigo; entendia-o. Quando se é novo, com onze anos, todas as fantasias são permitidas. Ele também sonhara com aquilo. Voar. Agora todos os sonhos lhe estavam vedados. O mundo dele resumia-se ao que estava dentro da casinhota. E ao que conseguia ver de longe: largou a caravela, fez rodar a cadeira, tirou uns binóculos duma gaveta e dirigiu-se à janela: ficou assim demoradamente a olhar: lá para o fundo, para a clareira do bosque onde corria o riacho. Perguntei-lhe o que estava a ver. – Pássaros – respondeu, sem desviar os binóculos. Pedi se podia ver e ele, laconicamente, disse para eu esperar. Quando peguei nos binóculos, assestei-os lá para o fundo e procurei pássaros na copa das árvores. As árvores estavam muito próximas, muito folhosas, muito verdes, mas não havia pássaros. Se houvesse, estariam muito bem escondidos. Baixando as lentes para o riacho, vi, isso sim, três mulheres batendo com a roupa nas lajes. Não eram muito novas nem muito velhas, deviam ter a idade do Homem Metade. Tinham os pés na água e as pernas nuas até muito acima do joelho, a pele voluptuosamente clara e luzidia com os reflexos do sol. E voltei a procurar os pássaros. O Homem Metade regressara à Nau Catrineta e queimava mais uma caixa de fósforos. Tinha o silêncio como cúmplice. Não existiam palavras para a sua dor.
- Um dia vais emprestar-me os teus binóculos? – pedi eu; ele não disse nada. Colou mais um fósforo. Perguntei-lhe se já alguma vez tinha visto um cuco e continuei a espiolhar as árvores. Vi um melro do tamanho de uma águia. Tinha, no bico amarelo, uma minhoca do tamanho de uma cobra. O bicho a contorcer-se. E de repente desapareceu. Quando eu disse «estou a ver um melro», contentíssimo, já o pássaro tinha sumido.
- Sabes? Nunca vi um cuco. É por isso que quero viver nos bosques, e ficar à espera. Posso ganhar raízes, mas hei-de ver um cuco. Se me emprestares os binóculos, um dia destes – e ele, claro, emprestava-mos. – É mais interessante assim, vê-se tudo ao pormenor. Também posso ver como os pássaros constróem o ninho, como começam do nada com duas ou três palhas e o vão tornando redondo e fundo e forrado com penas macias e quentes. Não achas que os ninhos, em geral, são uma obra de arte? Eu acho. Depois é ver os ovos eclodirem e os filhotes crescerem de goelas no ar, e depois deixarem o ninho para darem o primeiro voo. Como é que um pássaro sabe que sabe voar? Já pensaste nisso?
O Homem Metade não estava ali. Corria por campos de papoilas e tremocilhas e trepava oliveiras em busca de ninhos. Enlaçava as pernas nos troncos mais compridos das árvores e subia como um macaco. Empoleirava-se e fazia equilíbrio nos ramos horizontais. Tinha onze ou doze anos, como eu… E a caravela à espera de fósforos.
- Mas já alguma vez viste um cuco? – insisti, arrumando os binóculos. O Homem Metade caiu em si. Não. Nunca tinha visto um cuco, se bem se lembrava. Em África vira aves de todas as cores e tamanhos, mas um cuco nunca tinha visto. Só ouvido o cucu ao longe, e a última vez fora há pouco tempo.
- Esse pássaro fascina-me, tem qualquer coisa de mítico. É como o Gigante Adamastor. – Não soube por que comparei o cuco ao gigante lendário de Camões. Talvez por causa da caravela de fósforos. Depois tirei duma barrica para uma lata a cola branca que precisava. Parecia leite espesso. O Homem Metade ainda me deu uma trincha. E agradeci e fui-me embora, porque tinha pressa de construir as minhas asas. Parti a pensar no Homem Metade. Era uma boa pessoa e dar-lhe-ia asas, no tal jogo imaginário que eu tinha: que era dar asas às pessoas boas, sendo eu – coisas de miúdos – o super-herói Homem Pássaro com super-poderes. Asas, pois, para o Homem Metade. As suas mãos faziam maravilhas. Aqueles monumentos todos, feitos com tanta paciência e dedicação, ao mais pequeno pormenor, janelas manuelinas, coruchéus e gárgulas fantásticas, a igreja da aldeia com os cata-ventos e todos os sinos, pequenos e grandes, no campanário. O hidroavião Lusitânia, que fez a travessia do oceano Atlântico de Portugal para o Brasil, pela primeira vez na história da Humanidade, por ares nunca dantes navegados, tinha todos os detalhes. Nem lhe faltavam as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo. Ele era um verdadeiro artista, fazia obras de arte com as mãos.
E parti contente por tudo, pelos binóculos que um dia havia de levar, pela lata de cola, pela trincha e sobretudo pelas obras de arte do meu amigo da cadeira de rodas, mas não reparei que o deixara a chorar. Eu tinha onze anos, não podia reparar. As olheiras do Homem Metade tornaram-se lagos insalubres. Grossas e silenciosas lágrimas correram-lhe como rios para o matagal de pêlos da cara. Era sempre assim, soube mais tarde. O Homem Metade regressava à infância para correr pelos campos e ir aos ninhos e trepar as árvores. Longa e dolorosa viagem no tempo, essa. Eu não sabia metade da história. O Homem Metade dormia pouco, e quando dormia acordava sobressaltado com pesadelos que se passavam em África. Crianças negras sem rosto corriam para ele e traziam-lhe as pernas de volta, mas as pernas enchiam-se de vermes e apodreciam num instante. Então as crianças riam, mesmo sem rosto, e ele despejava-lhes tiros e tiros de metralhadora para se vingar da brincadeira de mau gosto. Acordava com suores frios e levava logo as mãos às pernas, mas elas não estavam lá. O pesadelo era quase sempre o mesmo. Também sonhava com o melhor amigo. Via sangue e miolos a escorrerem pelo corpo e o amigo dizia-lhe que estava no Inferno, pedia-lhe que o levasse para o Céu. O Céu estava muito, muito longe. Um bater de porta mais brusco deixava-o nervoso. Uma sirene de bombeiros também. Todos os ruídos fora do normal o faziam reviver a guerra. Um miúdo a correr deixava-o destroçado. A guerra continuava dentro dele. E assim a Nau Catrineta foi sacudida por violenta tempestade. A ira de Adamastor também existia ali, dentro da casinhota. Eu ainda não sabia metade da história.
Mas o Homem Metade, sendo ele, literalmente, metade de um homem, passou a ser para mim o exemplo máximo da coragem e da abnegação humanas. Como se deve imaginar, não cheguei a voar como Ícaro, nem sequer concluí «as minhas asas» de onze anos. Simplesmente, para o resto da vida, conhecer o Homem Metade... tornou-me diferente.
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