domingo, 14 de junho de 2009

Água fria

Calcei as minhas botas e saí para a rua como um animal sai da toca, após a longa hibernação. Devia ter os olhos inchados e os cabelos desgrenhados em pé, com ar de louco ou troglodita, mas não havia ali ninguém para me ver. Além disso, estava tudo imerso numa admirável massa nevoenta. O mundo era um oceano de nevoeiro opaco e branco. Uma folha de papel sem um único risco. Soube-me bem espreguiçar demoradamente e olhar tanta água a correr à minha frente. Ali, no riacho borbulhante e a fumegar vapor, parecia cozinhar-se um manjar de pedras, pedrinhas e pedregulhos.
Avancei, agachei-me e afundei as mãos na água. Tão bom, mexer na água fria, vê-la escorrer entre os dedos! A minha vontade era abrir as goelas e deixá-la entrar para dentro de mim, deixar entrar o riacho inteiro e senti-lo gorgolejar nas profundezas das entranhas, deixá-lo purificar e lavar a noite e a náusea da ressaca. Esfregando a cara, senti a barba áspera como lixa número dois, talvez três (pensei na bodega do armazém onde trabalhava), fechei os olhos e enfiei metade da cabeça na corrente de água límpida. Kerouac tinha razão. Não há no mundo sensação que se compare à de lavar a cara em água fria, de manhã, na montanha.
Mantive-me imerso até aguentar; quando retirei a cabeça, estava a Leandra ao pé de mim, envolta no saco-cama, a olhar-me estremunhada com uma careta de arrepio.
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