quarta-feira, 29 de abril de 2009

terça-feira, 28 de abril de 2009

A minha Vespa e os Vagabundos do Dharma de Kerouac

Isto é complicado, esta coisa do trabalho e do dinheiro, este sistema, esta engrenagem. Sei que somos todos moscas que vamos cair na mesma e única teia. E o problema está aí: ganha-se algum dinheiro, mas somos prisioneiros todos os dias, todos os meses, todos os anos e toda a vida. Foi assim por que tive de carregar pesados poceiros de uvas por encostas de barro para poder comprar a minha tenda e a minha mochila; e foi assim por que tive de descarregar a ombro milhares de sacos de cimento de cinquenta quilos e passar horas e horas de tédio, enfiado num armazém poeirento, para poder comprar, a prestações, a minha Vespa Piaggio (faça-se jus à marca) e com a qual partia agora ao encontro da Leandra e, depois, rumo à serra. Feliz e bem disposto...
A minha Vespa... Que máquina, a Vespa! Não andava muito, ia até aos setenta, pois o motor era de cinquenta centímetros cúbicos, mas levava-me sempre ao meu destino e nunca me deixou ficar a pé. Tive inúmeros furos, porém lá estava a fantástica e oportuna roda sobresselente para me salvar: em quinze minutos resolvia o problema e lá ia eu todo encantado da vida. Maravilha das maravilhas! (Parece que a marca me pagou uma choruda comissão para incluir aqui o nome da motoreta e dizer dela mil encantos – eh! eh! –, mas não, nada disso, que fique bem entendido).
Rigorosamente, não escolhi coisa alguma. O meu pai é que fez o negócio com o homem da oficina, como se fosse para ele, como se fosse ele quem iria pagar as letras durante dez longos meses. Tratou de tudo quase sem dizer nada, como era seu costume, autoritariamente. Só disse: «Tal dia vamos buscar a mota... É uma Vespa!» E eu: «Vespa? Mas quem lhe disse que eu queria uma Vespa?» Fiquei logo desapontado e, mais uma vez, surpreendido pelo autoritarismo todo-poderoso de meu pai. Mas não contestei; pensando melhor, até me agradava ter uma lambretta, tinha estilo, fazia-me sonhar com Itália, Roma, o Coliseu, a Piazza di Spagna cheia de pombas a esvoaçar ao sol, spaghetti, Veneza e gôndolas, e muitas Vespas pelas ruas estreitas ou nas vias rápidas, rumo à praia, com sensuais namoradas morenas – italianas dos contos de Moravia –, atrás, de cabelos compridos ao vento. Brrummm!... Arrivederci!... Alberoni disse que ela era feminina e roliça e que simbolizava um estilo de vida descontraído, liberto de medições de status ou de poder... Já um mito... Enfim, ter uma Vespa tornava-me diferente ou marcava a diferença entre os meus colegas, porque todos eles tinham motas iguais ou quase parecidas. Andava pouco, tudo bem; mas era bom assim, senão ainda acabaria por me matar numa curva qualquer...
Na oficina, lá estava ela, uma bela motoreta resplandecente e branca. «Parece mesmo uma vespa!» – exclamara, em 1946, Enrico Piaggio. Ao lado, outra igualzinha, mas preta. «É esta» – disse o meu pai, apontando para a branca. Resumindo e concluindo, eu estava ali só por estar, visto que as decisões já tinham sido tomadas. Sacana de pai!... Mas a preta atraía-me sobremaneira e, no último instante, mesmo antes de se fechar o negócio, disse:
- Prefiro a preta.
- A preta?
- Sim, a preta; é uma cor como outra qualquer.
- Pronto, a preta – aquiesceu o meu pai, acrescentando: – Podes-me escolher tudo que seja preto, menos a nora!...
O homem da oficina riu-se até tossir e lançar um escarro amarelo, sofredoramente, para um canto escuro de óleo e sucata. Parece que meu pai tinha a fama de ser o animador de festas e de serões com a sua jocosidade, embora, na prática, fosse uma pessoa tímida, contando anedotas mais ou menos divertidas ou dizendo piadas mais ou menos mordazes. Eis ali um vestígio disso, com uma nuance característica da sua geração racista.
- Que mal têm as mulheres pretas? – retorqui, algo indignado. – São tão inteligentes como as brancas e, na cama, são porventura melhores que as brancas.
Isto soava a ideologia machista e fora dito sob a influência dos inúmeros calendários de belas mas perturbantes mulheres-só-seios, pendurados um pouco por toda a parte, e que me davam a volta à cabeça. Faziam-me pensar que jamais conseguiria andar com uma mulher daquelas, porque todos os homens lhe lançariam, na rua, olhares cobiçosos... O que me levou ainda a concluir, mentalmente, que um belo e volumoso par de seios fica sempre bem... na mulher dos outros!...Ah! Mas não era bem assim que eu queria expressar os meus sentimentos em relação às mulheres, fossem elas pretas ou brancas. O que queria dizer era que, fisicamente, as mulheres de cor podem ser muito mais belas que as brancas, partindo do princípio que todas as mulheres são belas. Como uma scooter preta pode exercer muito mais fascínio que uma scooter branca.
A minha era preta, agradavelmente preta, e lá ia eu a cavalo nela ao encontro da Leandra, feliz, bem disposto e seguro. Seguro?... Não tanto. Incomodava-me uma estranha sensação de esquecimento, algo por fazer ou algo por trazer... O meu sentido número não-sei-quantos dizia-me: «Pensa bem, rapaz, porque te esqueceste de qualquer coisa... O que será? o que será?» Dei uma volta ao miolo e, quando descobri, dei meia volta à estrada e regressei a casa. Em cima do divã estava a minha bíblia, esqueci-me dela ali, aberta, capítulo 34, onde pude reler, como num flash de fotografia:
Que é um arco-íris, Senhor?
Um arco
Para os humildes.
Sempre a correr, enfiei o Kerouac na mochila e parti.
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sábado, 25 de abril de 2009


O rio


Foi numa noite de lua cheia que tomei a decisão...
Porquê de lua cheia, não sei. Mas ali estava mais uma dessas noites sagradamente misteriosas em que a lua cheia do seu trono vigia e rege as marés, a fecundidade das plantas, dos animais e até da própria Terra mãe no seu todo. E em alguns homens também consegue libertar a verdade da sua essência primitiva. É ela a amante dos lobisomens, pois é a única a quem se revelam verdadeiramente, a quem adoram: a sua bela e distante rainha da noite, a sua confidente sábia e muda.
Aquela foi também mais uma das minhas noites em que vagueei cansado de contradições, com o espírito demasiado nublado e o corpo tão pesado e ao mesmo tempo tão ausente. Senti em mim a ferocidade acutilante na multidão de vozes gritando-me e impossibilitando o sono e a paz. Tudo girava à minha volta, e uma barreira inexplicável teimava em voltar sempre, fazendo-me temer perder tudo e a própria razão, receando e tendo a certeza de não poder mais retomar o meu quotidiano vulgar de horários, pressas, regras, obrigações e tantas proibições. Os meus amigos, a maior parte deles, tomavam drogas, consumiam-se em cigarros e afundavam-se em cerveja, uísque e outras bebidas chamadas espirituosas, com o ar, dir-se-ia, mais felizardo do mundo... Não era assim que passava o meu tempo livre, embora também não me enclausurasse como um monge que pretende a santo. Para eles, essa pequena parcela de tempo era de fuga, mas de uma fuga alienatória que os fazia pensar: «Ao menos, divirto-me»... Era isto viver?
A este respeito, assaltava-me frequentemente um sonho repetitivo: fazia calor e todos esses meus amigos tomavam banho num rio, um rio bastante peculiar, de água choca, nauseabunda, onde boiavam excrementos de esgoto, ratazanas pestilentas e cadáveres de animais monstruosos em decomposição, uma verdadeira cloaca, um rio digno do pincel de Jerónimo Bosch; mas eles divertiam-se, mergulhavam e chapinhavam como crianças felizes, e, quando emergiam de cabelos a escorrer tripas e vísceras fedorentas, até me incitavam gritando: «Aproveita enquanto é tempo!», «A água está uma delícia!», «Vem, não sejas parvo!» e acicates do género... Sentia um desejo visceral, imenso, de me atirar de cabeça, mas não o fazia; dizia que para a semana, sim, daria uns mergulhos – coisa dramaticamente absurda e confrangedora, pois algo me garantia interiormente que no próximo fim-de-semana o termómetro iria baixar drasticamente e, portanto, fosse uma loucura tomar banho naquele rio...
Estaria a ficar louco?
A frustração tomava conta de mim como uma sombra ou um limbo pegajoso, e aquela noite de lua cheia fora decisiva. A mesma lua que move marés e faz germinar a semente escondida na terra, a mesma lua que inspira os poetas e desperta a fera que há em nós, também ela me iluminou o espírito e fez subir a montanha até ao refúgio da bruxa que eu tanto temia desde criança.
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domingo, 19 de abril de 2009

O lado de lá de cá
Na minha cidade havia um edifício que se destacava de todos os outros, apesar de as multidões de transeuntes mal repararem nele. As pessoas passavam por ele quase em corrida, quase acotovelando-se umas nas outras, sem se olharem, sem se sorrirem, ao som dos ruídos, dos reclames, das sirenes, dos motores, num vaivém frenético para chegarem a qualquer lado que nem elas próprias sabiam. Se calhar ignoravam-no, ou pura e simplesmente fugiam desse edifício. Acho que percebo agora por que me advertiam os adultos, quando eu era criança, para não me aproximar dele. Diziam que estavam lá dentro, enclausurados, poetas lunáticos, artistas sonhadores, homens e mulheres que falavam sozinhos, homens que fingiam ser inventores disto e daquilo, mulheres que se despiam e bailavam nuas, até ao êxtase, arrancando os cabelos, ou abrindo sulcos de sangue na pele…
Pois um dia ganhei coragem e entrei. Aquela grande porta estava aberta e, sem pensar duas vezes, entrei. Deparei com um corredor imenso, branco, e lá ao fundo as pessoas, paradas, olhavam para as paredes. Avancei e juntei-me a elas. Não vi nada nas paredes, mas as pessoas continuavam a olhar, muito serenas, contemplativas. Só depois reparei que, se olhasse com mais atenção, visualizaria telas expostas pelas paredes dos corredores, e que as pessoas as contemplavam com ar fascinado. Havia uma que se intitulava «Controla a tua raiva», outra «Multidão» e outra «As pessoas solitárias pensam em formigas»...
Também eu fiquei fascinado, diria mesmo subjugado ou completamente magnetizado pelos quadros. A certa altura fiquei na incerteza se estava no lado de cá ou no lado de lá das telas, e agarrou-se a mim um certo pavor: o de me poder vir a encontrar retratado numa daquelas pinturas. Por isso recuei, pé ante pé, primeiramente, depois a correr como um louco para escapar dali. Atravessei o grande corredor branco e, antes de sair do edifício, parei, meio aturdido, e li numa tabuleta:
MANICÓMIO. ENTRADA LIVRE.

Fiquei baralhado, sem perceber coisa alguma…
Ainda hoje estou na dúvida.
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