sábado, 17 de outubro de 2009



O Homem Pássaro vai ao cinema


Durante a tarde de sábado, o homem dos filmes andara com a sua ruidosa furgoneta Hanomag e um altifalante ainda mais ruidoso a fazer reclame. «Hoje, às nove da noite, grandioso filme com John Wayne! Não perca! No Centro Recreativo, grandioso filme! Nãaao perca! Com Jooohn Wayne!»...
Era muito raro haver uma sessão de cinema na minha aldeia. Só de tempos a tempos aparecia o cinematógrafo, o homem dos filmes, e se propunha projectar um filme no Centro Recreativo. O homem dos filmes viajava de terra em terra, qual saltimbanco, a mostrar quase sempre fitas de índios e cowboys. Mas isso era sempre, também, uma festa. Da última vez estivera lá um ilusionista que fazia desaparecer pombas e hipnotizava as pessoas e punha-as a comer cebolas como quem come maçãs, no meio da gargalhada geral. Mário, o Mágico. E, no Natal, um grupo de malabaristas em avarias sobre rolos e cadeiras, uns cuspindo fogo, outros equilibrando pratos na ponta do nariz. Ninguém se queimou e prato nenhum se quebrou.
E assim, ao cair da noite, tomei banho na bacia de zinco, jantei, depois penteei-me durante meia hora e despejei quase o frasco de perfume da minha mãe em cima de mim. Não tinha a certeza se ela apareceria ou não no Centro Recreativo para assistir ao filme, mas, pelo sim pelo não, quis ir bem arranjado e perfumado como se fosse para a missa com a minha avó. O problema foi ter posto demasiado perfume, e ainda por cima de mulher. No momento senti-me uma perfumaria ambulante e até enjoado ao ponto de querer vomitar o jantar. Onde punha o nariz, lá estava o incontestável cheiro, a aura invisível que ia comigo para onde quer que eu fosse. Se tomasse banho uma outra vez... Talvez, indo para a rua, o vento levasse parte do perfume como faz ao alecrim e ao loureiro, como faz ao enxofre dos pinheiros, talvez o levasse para longe, o arrancasse da pele e da roupa e o disseminasse um pouco por toda a terra. Talvez o vento me ajudasse, como ajuda os pássaros a voarem. E o Homem Pássaro, onde estava? O meu outro eu era o Homem Pássaro. Precisava dele. Agora era o Homem Perfume Exagerado e tinha a certeza que afastaria todas as raparigas em vez de as atrair. Especialmente, claro, ela. O perfume de arroz-doce dela seria sorvido num ápice pelo meu perfume barato que só cheirava a perfume barato e nada mais. Todos os perfumes seriam sorvidos pelo meu, toda a gente me apontaria o dedo e toda a gente se divertiria à minha custa, sobretudo os meus colegas de escola, que iriam aparecer no Centro Recreativo de certeza absoluta.
Por isso, fui para o quintal e voei no lusco-fusco da noite, ao lado dos pirilampos e dos morcegos, que eu sabia não serem pássaros, como teimavam as velhas, nem ratos com asas, mas simplesmente morcegos, mamíferos voadores. De braços abertos, corri ao longo da horta da minha avó, torneei as couves-de-horto gigantes e, lá ao fundo, a figueira retorcida cheia de nós tentaculares. Quando cheguei ao ponto de partida, sustive a respiração e preparei-me mentalmente para me cheirar. Só depois é que me cheirei. O vento tinha-me ajudado, mas só um pouco, e dei outra volta igual. Quando regressei, achei que metade do perfume enjoativo já não estava em mim – estava espalhado pela escuridão, pela noite, pelas sombras, pelos ralos, pelos luze-cus, pelos morcegos e pelas couves da minha avó. O Homem Pássaro, que era eu, recolheu as asas, satisfeito, e virou as costas a tudo isso.
O cinema esperava-me.
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