domingo, 17 de maio de 2009

O barbeiro como um carrasco

O meu pai punha-me a cortar o cabelo duas vezes por ano, de seis em seis meses. A penúltima fora em Outubro, antes da escola começar, e a última fazia pouco mais de duas semanas, em Março – o que causou logo grande chacota por parte dos meus colegas. Aos burros é que se tosquiava o pêlo em Março. Ou Março era o mês dos burros. Enfim, num sábado à tarde, o meu pai deixou-me sozinho no barbeiro e tomou de assalto a taberna, a pouca distância dali. Mas havia mudanças na barbearia: os calendários. Os calendários não eram os mesmos; aqueles calendários de anos já passados com a Torre de Belém e o Mosteiro da Batalha e a ponte sobre o Tejo com o nome de Salazar, e ainda um outro com uma paisagem branca da Serra da Estrela, todos eles tinham sido mudados e exibiam agora mulheres seminuas de seios lustrosos e atraentes. As mulheres eram bonitas, mas os seios perturbavam-me o olhar.
Enquanto esperava pela minha vez, sentado num banco, esforcei-me por manter os olhos colados ao chão, a ver cair o cabelo do cliente que me precedia a cada tesourada do barbeiro. O chão de cimento estava preto de cabelo espalhado e o meu pé direito não parava de baloiçar num vaivém nervoso. Como um pêndulo de relógio. Às vezes tomava atenção nas conversas. Tanto falavam de fado, de futebol e de peregrinações a Fátima, como de batatas para semear, marrãs para levar ao porco, porcos para capar e casamentos para breve. O barbeiro era danado para dar à língua, via-se que gostava de intrigas e coscuvilhice. E o meu olhar volta-e-meia a trepar as paredes qual osga peganhenta... Janeiro, Fevereiro, Março quase a terminar, férias da Páscoa em Abril, seios como insólitos frutos perturbantes, olhos rapidamente no chão, pé direito a dar-a-dar...
A minha vez, finalmente. O barbeiro, depois de escovar e virar do avesso o assento do cadeirão verde e cromado, mandou-me sentar. Um cadeirão muito sofisticado que rodava e tudo, que eu podia imaginar como sendo o trono de um rei, mas onde me sentia como na cadeira eléctrica. Cortar o cabelo era um castigo. Quando poderia eu usar o cabelo grande como Jesus Cristo?... O barbeiro colocou-me a toalha branca pela frente e prendeu-a muito apertada ao pescoço, com um alfinete de dama. Endireitou-me a cabeça com ambas as mãos, e que ficasse quieto. No grande espelho, eu a olhar outro eu enterrado no cadeirão da tortura. E os calendários reflectidos. Se olhasse para a esquerda, só mexendo os olhos, podia ver uma bela mulher nua a exibir os peitos firmes e perturbantes, num reclame a pneus. Se olhasse para a direita, outra mulher igualmente bem dotada e igualmente perturbadora, de pele muito clara mas cujas aréolas dos peitos eram extremamente escuras em comparação com o resto do corpo. Tudo isso me puxava o olhar. Tudo isso me atraía como uma mariposa em direcção à luz.
- E a escola vai boa, cachopo? – perguntava-me o barbeiro, o pente e a tesoura de aço silvando muito perto das orelhas.
Vendo o cabelo cair aos tufos que nem folhas no Outono, sentia pouca vontade de falar, mas respondia telegraficamente com sins e nãos ou mais ou menos e assim-assins. A cada resposta, os meus olhos iam parar às mulheres desnudas. Estavam lá um segundo, depois desciam para o mar de cabelo ruço na toalha branca à minha frente. Ou demoravam mais tempo pelas prateleiras de vidro com tesouras, máquinas, navalhas e pincéis de barbear, frascos, caixas amarelas de sabão em pó Claus, pó de talco Claus, espuma de barbear Claus, água de colónia Claus... Seios Claus... Não, não e não. Era impossível ignorar os calendários. As mulheres eram atraentes. Não me podiam culpar só porque as olhava. Se estava a cometer algum pecado, a culpa não era minha. A culpa não era minha!
Foi quando olhei mais demoradamente que senti aquilo. O calafrio duma serpente ali a deslizar pelo ventre. Depois algo a nascer ali sob pressão, uma árvore a desabrochar rasgando a terra visceral. Uma onda de calor no rosto. O rosto em chamas.
Não ousava olhar o espelho.
Salvou-me o barbeiro, passando-me de súbito um pincel molhado atrás das orelhas. Algumas gotas de água escorreram para o pescoço, frias. Depois os dedos do homem a fazerem-me inclinar a cabeça com firmeza, e o fio duma navalha a raspar o couro cabeludo em redor da primeira orelha, depois em redor da outra. Dolorosamente. E o lugar das suíças. Arrepiantemente. O barbeiro, agora, como um carrasco.
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sexta-feira, 8 de maio de 2009

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Blue Junkie

Já lá ia o tempo daquele Pedro do poster dos hippies na praia, que se empenhava ardentemente em movimentos pacifistas e apologizava o amor livre, onde ousava escrever, no jornal do liceu, coisas como esta «Declaração do Direito ao Amor»:
- Artigo primo: Será do direito de todos o acesso ao amor. Este será feito onde muito bem entenderem os amantes.
- Artigo segundo: Todos os animais terão o direito de se amarem na rua. Que isto nos sirva de exemplo.
- Artigo terceiro: O amor é um dom que nos concedeu a Natureza. Quem contra ele se erguer, impedindo-o de se manifestar, será obrigado a amar oito horas seguidas.
- Artigo quarto: Será proibido usar máscara; o amor, assim, não tem o mesmo sabor.
- Artigo quinto: Será dever de todo o cidadão falar todos os dias em assuntos relativos ao amor.
- Artigo sexto: O amor não será impedido por qualquer filosofia, religião ou política.
- Artigo sétimo: Não haverá medos ou receios em relação ao amor. As pessoas serão livres e sentir-se-ão totalmente à vontade quando sentirem necessidade de o fazer.
- Artigo oitavo: Serão proibidas as violações. Isso não é amor, é um desrespeito ao mesmo.
- Artigo nono: É urgente o amor; façamo-lo já!
Quase apetece dizer: assim falava Zaratustra...
Enfim, o seu saco de cabedal cheio de sinais e símbolos da paz, o cabelo comprido e as atitudes de hippie já não queriam dizer absolutamente nada. Debaixo de tudo isso, bem lá no fundo do seu ser, escondia-se o germe da violência, como um ovo, permanentemente em incubação. Esperando em incubação. Esperando pela hora certa de partir a casca e vomitar fogo e raiva e tudo cá para fora...
Um dia, pasmei. Pasmei. Tinham-me dito (já não o via há muito tempo) que ele estava fisicamente em baixo e à beira de uma depressão, e pediram-me para o ir visitar, já que éramos bastante amigos e com ideias muito próximas acerca da vida e do mundo. Quando bati à porta, depois de vários chamamentos, apareceu-me ele de espingarda na mão. Pasmei! Era uma espingarda caseira de canos serrados. Disse-me que era para dar cabo do primeiro chui que entrasse ali, pois afirmava, absolutamente convencido, que o queriam prender por causa de coisas que não fez, roubos, tráfico de droga, etc. Todo ele era um feixe de nervos e pareceu-me de facto que estava louco. Pensei que as drogas lhe deram a volta ao juízo e temi mesmo pela minha segurança, visto que apontava continuamente aquela arma para mim. No estado em que estava, não fosse o diabo tecê-las!... Senti medo, verdade verdadinha. A fobia da perseguição era, nele, mais que óbvia. Possivelmente, andava a injectar-se com cocaína... E, agora, tudo isto me faz pensar no autor da “Viagem ao Mundo da Droga”, que conta que, no seu quarto em Catmandu, Nepal, tem polícias debaixo de uma tapeçaria e que, no tecto, tem uma câmara de filmar a espioná-lo... Flippé!...
Fosse como fosse, também o Pedro me pareceu bastante tresloucado e fora de si. Fomos para o sótão, ele encostou finalmente a espingarda a uma parede, mas muito perto dele, fumou um charro de erva, que cultivara (disse-mo) no amazónico jardim da mãe, entre lantanas, onde pululavam abelhas atarefadas, jasmim e passifloras, iúcas e lúcia-lima, fúcsias e estramónios, ou daturas, de flores rosadas, amareladas e grandes como trompetas... Contou-me quase toda a sua vida, sobretudo as aventuras passadas por terras de Astérix e Joana d’Arc, durante as vindimas, e, enquanto isso, ouvíamos um velhinho e delicioso disco dos Supertramp. O que me contou fez-me aproximar ainda mais dele, porque eram também e sobretudo coisas íntimas. O quanto eu desejava ter tanto para contar! Poderia escrever livros e livros e livros!... Depois, demos uns toques na guitarra e considerei positivo o saldo daquela tarde, tanto para ele como para mim. Mas a cena da espingarda e o querer dar cabo dos chuis impressionaram-me sobremaneira, e não esqueci isso tão depressa.
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