segunda-feira, 20 de julho de 2009




A minha Lua


Amanhecia. Via-se a lua ainda com um sorriso feliz de noite de pândega, branca e esburacada lembrando uma hóstia prestes a ser absorvida pela bocarra azul do mundo. Estava quase a tocar a muralha circular da Fórnea, diria que a escassos metros, e apetecia ir lá e mexer-lhe com as mãos. Divaguei. Lua, ó feiticeira lua... Estás tão longe e, no entanto, quase tocas a espinha dorsal desse dinossauro adormecido que é a montanha que enxergo da minha janela aberta aos pirilampos! Quantos segredos escondes tu com esse rosto de mica para me apetecer uma escalada e tocar-te com a mão, acariciar-te a face de sorriso angélico?... Se no teu lado mais escuro está um homem que corta silvas por castigo divino, então eu sou um extravagante lunático e Diana, embora caçadora de arco e flecha, matando corços e veados no bosque enluarado, é a minha deusa predilecta...
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quinta-feira, 16 de julho de 2009


Ópio?

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


(do Opiário, Álvaro de Campos)
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domingo, 12 de julho de 2009


Corre, miúdo, corre

Na minha infância, de facto, reconheço terem acontecido coisas impossíveis de lembrar, outras de que formo uma vaga ideia, e ainda outras claramente distintas.
Lembro-me particularmente das noites de trovoada e do mutismo da família, à espera de sabe-se lá o quê... A minha avó rezava.

Santa Bárbara bendita,
No céu está escrito
Entre a cruz e água benta;
Nos abrande esta trovoada
Para bem longe...

(Faço aqui um esforço de memória)

Onde não haja
Ovelha com cordeirinho,
Nem cabra com cabritinho,
Nem folha de figueira,
Nem nada que o Senhor queira!

Qualquer coisa assim. E também me lembro das outras noites, dos serões à volta da lareira, da casa cheia de fumo e os olhos a arder, a chorar por nada e por ninguém, e sempre e de novo as velhas, a minha avó, as irmãs da minha avó e as amigas da minha avó – essas velhas faladoras e bisbilhoteiras, eternamente com uma história para contar. Para elas, ou nelas, a língua seria a última parte do corpo a morrer, assim como a última a decompor-se. As velhas tinham sempre uma palavra a dizer, e mais isto e mais aquilo, e era assim e era assado, e foi fulano e foi sicrano... Os velhos não eram bem-bem assim. Os velhos fechavam-se na sua concha e a morte era esperada com paciência de Job, ainda que, talvez, com um sentimento de impotência e, por resultado, uma raiva muda. Elas, não; elas falavam, falavam sempre, mesmo que repetissem a mesmíssima coisa dúzias de vezes. Eram incansáveis. Eram imparáveis. Parecia-me que a única função que tinham no mundo era falar, e que a minha era ouvi-las. O espantoso era que elas, as velhas da minha infância, eram umas exímias contadoras de histórias – histórias fantásticas, do arco-da-velha!...
Nunca cheguei bem-bem a perceber por que carga de água elas nos contavam essas coisas de arrepiar. Mas nós, miúdos, gostávamos a valer. Eram histórias de pessoas com poderes estranhos e diabólicos, de espíritos e almas do outro mundo, cenas macabras que se passavam quase sempre à noite. Ficávamos a magicar, a tentar ver tudo isso com os nossos próprios olhos, embora assustados que nem ratos. Mesmo assim, gostávamos. E as velhas prosseguiam, inflexíveis, com aquele ar sabedor e experiente de quem diz que já passou por muitas atribulações na vida.
Mas, enfim, na minha infância, as histórias que me impressionaram sobremaneira e ficaram melhor gravadas no cérebro foram sem dúvida as histórias de lobisomens, ou, como nós dizíamos – como elas diziam –, belisomens.
As velhotas nunca nos contavam como eram realmente esses monstros. Porque, na verdade, também elas jamais viram fosse lá o que fosse. Daí que tivéssemos uma vaga ideia e os imaginássemos como homens que, à meia-noite e à lua cheia, inexplicavelmente, se transformavam em algo semelhante a lobos. Caminhavam de pé, tinham o corpo repleto de pêlos e cabelos, porventura ainda envergando roupas em farrapos, garras de lobo, dentes e colmilhos de lobo, talvez com laivos de espuma, talvez de sangue (conforme), olhos brilhantes e fendidos – uma cara feia, horrenda, ameaçadora – enfim, uma criatura metamorfoseada de um horror indescritível, deambulando e correndo no escuro da noite, à lua cheia, sequiosa de carne, sangue!... E também constava que, quando alguém se visse em apuros – embora, em rigor, isso jamais tivesse acontecido –, a única salvação era subir uma árvore e, aí, com um objecto afiado, tentar picar a besta até que se desse a metamorfose lobo-homem.
Homem-lobo. Lobo-homem. Lobosomem. Lobisomem.
Era arrepiante, medonho. Ficávamos a magicar coisas e loisas, aterrados, e na cama, à noite, jamais ousaríamos relancear os olhos pela janela. E quando os gatos, com cio, na rua, miavam como bebés a chorar desalmadamente, então nós, miúdos, encolhidos debaixo das mantas no frio de Janeiro, tornávamo-nos minúsculos, puros esfregões de medo, sem pinga de sangue, e não nos atrevíamos a abrir a boca, dizer: «Mãe!», dizer: «Mãe, tenho medo!» Talvez julgássemos que os bebés berravam por terem sido abandonados àquela hora da noite, e que estavam prestes a ser devorados, ou pelos lobos ou pelo lobisomem. Nesses momentos terríveis, o que queríamos ser era ser homens, porque os homens, regra geral, eram valentes e não tinham medo de nada. Pelo menos era essa a ideia que fazíamos deles, pelo que víamos ou pelo que eles próprios contavam. Depois, tínhamos sonhos que eram verdadeiras torturas psicológicas. O lobisomem, ou, vá lá, no mínimo o homem feio e mau, era um personagem quase constante do nosso fantástico mundo onírico. O papel dele era perseguir-nos, o nosso era fugir. Tínhamos sonhos que eram verdadeiras perseguições. Mas o monstro, porém, apanhava-nos. Embora nos escondêssemos bem, mesmo que nos escondêssemos em guarda-fatos, descobria-nos sempre. Talvez ele nos visse esconder, porque, inexplicavelmente, quanto mais dávamos às pernas, menos corríamos. Era como estar suspenso no ar e tentar correr; era como aqueles ciclistas que treinam sobre dois rolos, que se estafam a pedalar e estão sempre no mesmo sítio...
Mas entrementes fomos crescendo, crescendo, e, à medida que nos fazíamos rapazes crescidos, dávamos cada vez menos importância às histórias das velhas – no nosso lugar estavam outros miúdos, que cresceriam e que dariam lugar a outros miúdos... sempre assim. Talvez que, ao crescermos, não tivéssemos mais paciência para aturar as velhas; não, não tínhamos mesmo. As nossas aspirações eram agora outras: as raparigas. A atracção pelos belos cabelos de Preciosa. A fragrância da pele morena de Sara. A curiosidade pelo peito que ganhava forma de Maria... Também já não tínhamos mais a ocasião de estar ao pé das velhas e ouvir as suas histórias. Estas, porém, permaneciam em nós – permanecem –, porque a alma humana é uma arca bem funda onde se guardam todas as ninharias. Pode mesmo chegar a altura em que queremos deitar algumas fora, mas estão de tal modo ligadas a nós que não podemos, não conseguimos... E tornamos a fechar a arca e outro dia qualquer subiremos ao sótão... Sempre, sempre assim...
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quinta-feira, 2 de julho de 2009



Adeus, matemática!


Um dia sonhei que queimava todos os livros de matemática. Enquanto atirava um a um para a fogueira, feliz, comentava:
- O fogo é o melhor amigo do homem.
- Mas já não é o cão? – interveio uma voz.
- Não, não. O fogo foi, é e será sempre o melhor amigo do homem.
Os meus olhos brilhavam. Um fumo espesso e negro como tinta subia aos céus numa coluna ligeiramente helicoidal. Era um fumo de números e fórmulas, matemática que se evaporava, teoremas de Thales, Rolle, Cauchy e Lagrange, determinantes de Laplace, Rouché e Cramer, séries de Mengoli e Fourrier, critérios de d’Alembert e Leibnitz, matrizes de Cayley-Hamilton, funções de Taylor, derivadas dirigidas, vectores e espaços vectoriais, primitivas e integrais, primitivas imediatas e quase-imediatas, equações e inequações, referenciais cartesianos, radicais, coordenadas e abcissas, bissectrizes e meretrizes... perdão... mediatrizes... Eram visões claras de números, regras e fórmulas que se desquadrilhavam e rodopiavam ao sabor da brisa. Era a desordem e o caos da matemática. E eu sorria, feliz. A multiplicação de polinómios parecia-me, a mim, um poema vagabundo de Alberto Caeiro. O meu olhar é nítido como um girassol... E o binómio de Newton era a própria Vénus de Milo – sempre foi, aliás. Inúmeros sinais, o x, o y, o z, o n, alfa, beta, delta, maior, menor, igual, raiz quadrada, vectores u e v, todos eles andavam à solta tal qual estorninhos desnorteados. O sinal de infinito às vezes parecia uma serpente voadora, outras a máscara de Zorro. O pi assemelhava-se a um monumento sepulcral, uma anta pré-histórica que de repente tremia, tremia e logo se desmoronava em 3.1415926535897932384626433832795... – um número infinito de dígitos (que consegui memorizar melhor que Einstein), seguros como uma escada de corda das aventuras de Huckleberry Finn, a perder de vista pelo céu adentro, cada dígito um degrau, ou como uma incomensurável molécula de ADN em espiral. O teorema de Pitágoras, coitado, estava feito num oito. Senos, co-senos, tangentes e co-tangentes dispersavam-se sem sentido como cães vadios outrora ferozes, mas agora livres e mansos, dando à trigonometria um ar anárquico e poético, que me fascinava, antes de se sumir totalmente na vastidão do azul celeste. Aquele fogo era um fogo mágico que transformava a matemática em poesia, que deslumbrava como um colorido e surpreendente fogo-de-artifício, mas que, em vez de pingar e cair em repuxo, subia e desaparecia no céu. Fiquei de olhos esbugalhados, sabia que era o adeus aos números, às equações e à matemática em geral. A matemática morria e, enquanto isso, libertava-se do inferno e ia para o céu... Eu devia ser a pessoa mais feliz à superfície da Terra.
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quarta-feira, 1 de julho de 2009



A mão heptadáctila

No meu tempo de escola, ao toque da sineta seguia-se o quase silêncio, como se alguém fechasse a torneira do ruído. As vozes, os risos, os gritos ficavam presos nas gargantas à espera doutra oportunidade. Rapazes e raparigas entravam em fila conforme cordeiros de um rebanho e à entrada diziam «bom dia, Sra. Professora Balbina», ou «bom dia, Sra. Dona Balbina».
A Sra. Professora Balbina, ou a Sra. Dona Balbina, ou ainda a Sra. Professora Dona Balbina usava uns óculos grossos que lhe diminuíam os olhos perspicazes de coruja, como que vistos lá ao fundo num precipício, e o seu rosto magro fazia um V invertido desde o topo do nariz até aos cantos da boca. Era de porte esquelético e vestia sempre saias compridas que chegavam aos tornozelos. Velha, solteirona e feia, feia como a padeira de Aljubarrota, que diziam ser muito feia. Não sorria, nunca sorria, e era muito rígida e muito pontual. A sineta tocava sempre na hora exacta, nem mais nem menos um minuto. Quem chegasse atrasado era imediatamente posto de castigo ou brindado com uma tarefa difícil.
Mas o que mais assustava os alunos naquela Dona Balbina era a sua mão direita: não tinha cinco, nem seis, tinha sete dedos! Sete dedos!
Olhar uma mão assim produzia em nós um calafrio na espinha. Tinha o polegar, o indicador, o médio, o anelar, o mindinho e mais dois sem nome. Eu achava que se lhe podiam chamar o minúsculo e o minusculozinho. Sete dedos!

Miminho,
Seu vizinho,
Pai de todos,
Fura bolos,
Mata pulgas e piolhos!

Cinco dedos, cinco tarefas. E para os outros dois? Este recitativo que a minha avó me ensinou em criança não se podia aplicar a ela, pelo menos à mão direita. Um estalo com esta mão devia doer por dois ou três. Eu equiparava a professora com a famigerada padeira de Aljubarrota, que também supunha ter sete dedos. Mas isso era uma confusão minha. A Dona Brites de Almeida, mulher ossuda e muito feia, diziam, tinha seis dedos em cada mão e matou, isso sim, sete castelhanos, à pá, que se haviam escondido desnorteados e esfomeados dentro do seu forno, naquela tarde de Agosto de mil trezentos e oitenta e cinco. Sete castelhanos, sete dedos. A confusão estava no número sete.
A Dona Balbina não seria capaz de matar sete, nem cinco, nem dois, nem sequer um dos seus alunos, mas aquela mão direita desconforme e aberrante tinha sobre nós um poder excepcionalmente dissuasor. Sobretudo quando a erguia no ar fazendo ameaças disciplinares, ou agarrava com ela a vara de castanheiro, ou a grossa régua com mais de meio metro de comprido.
Como era possível uma professora ter sete dedos? Que utilidade tinham? Sete dedos dariam jeito a uma dactilógrafa, por exemplo, ou a um tocador de acordeão, a um pianista. Numa professora, era pavoroso. Devia ser proibido haver professores com sete dedos. Devia ser proibido haver Donas Balbinas. Esta Dona Balbina usava e abusava da sua mão, tinha consciência que era uma mão com poderes.
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