quinta-feira, 2 de julho de 2009



Adeus, matemática!


Um dia sonhei que queimava todos os livros de matemática. Enquanto atirava um a um para a fogueira, feliz, comentava:
- O fogo é o melhor amigo do homem.
- Mas já não é o cão? – interveio uma voz.
- Não, não. O fogo foi, é e será sempre o melhor amigo do homem.
Os meus olhos brilhavam. Um fumo espesso e negro como tinta subia aos céus numa coluna ligeiramente helicoidal. Era um fumo de números e fórmulas, matemática que se evaporava, teoremas de Thales, Rolle, Cauchy e Lagrange, determinantes de Laplace, Rouché e Cramer, séries de Mengoli e Fourrier, critérios de d’Alembert e Leibnitz, matrizes de Cayley-Hamilton, funções de Taylor, derivadas dirigidas, vectores e espaços vectoriais, primitivas e integrais, primitivas imediatas e quase-imediatas, equações e inequações, referenciais cartesianos, radicais, coordenadas e abcissas, bissectrizes e meretrizes... perdão... mediatrizes... Eram visões claras de números, regras e fórmulas que se desquadrilhavam e rodopiavam ao sabor da brisa. Era a desordem e o caos da matemática. E eu sorria, feliz. A multiplicação de polinómios parecia-me, a mim, um poema vagabundo de Alberto Caeiro. O meu olhar é nítido como um girassol... E o binómio de Newton era a própria Vénus de Milo – sempre foi, aliás. Inúmeros sinais, o x, o y, o z, o n, alfa, beta, delta, maior, menor, igual, raiz quadrada, vectores u e v, todos eles andavam à solta tal qual estorninhos desnorteados. O sinal de infinito às vezes parecia uma serpente voadora, outras a máscara de Zorro. O pi assemelhava-se a um monumento sepulcral, uma anta pré-histórica que de repente tremia, tremia e logo se desmoronava em 3.1415926535897932384626433832795... – um número infinito de dígitos (que consegui memorizar melhor que Einstein), seguros como uma escada de corda das aventuras de Huckleberry Finn, a perder de vista pelo céu adentro, cada dígito um degrau, ou como uma incomensurável molécula de ADN em espiral. O teorema de Pitágoras, coitado, estava feito num oito. Senos, co-senos, tangentes e co-tangentes dispersavam-se sem sentido como cães vadios outrora ferozes, mas agora livres e mansos, dando à trigonometria um ar anárquico e poético, que me fascinava, antes de se sumir totalmente na vastidão do azul celeste. Aquele fogo era um fogo mágico que transformava a matemática em poesia, que deslumbrava como um colorido e surpreendente fogo-de-artifício, mas que, em vez de pingar e cair em repuxo, subia e desaparecia no céu. Fiquei de olhos esbugalhados, sabia que era o adeus aos números, às equações e à matemática em geral. A matemática morria e, enquanto isso, libertava-se do inferno e ia para o céu... Eu devia ser a pessoa mais feliz à superfície da Terra.
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1 comentário:

  1. Premonição de Álvaro Campos... o binómio de Newton transformado em Vénus de Milo!
    Se calhar, a maior beleza da matemática está mesmo no adeus. Esfumada em poesia.

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