quarta-feira, 1 de julho de 2009



A mão heptadáctila

No meu tempo de escola, ao toque da sineta seguia-se o quase silêncio, como se alguém fechasse a torneira do ruído. As vozes, os risos, os gritos ficavam presos nas gargantas à espera doutra oportunidade. Rapazes e raparigas entravam em fila conforme cordeiros de um rebanho e à entrada diziam «bom dia, Sra. Professora Balbina», ou «bom dia, Sra. Dona Balbina».
A Sra. Professora Balbina, ou a Sra. Dona Balbina, ou ainda a Sra. Professora Dona Balbina usava uns óculos grossos que lhe diminuíam os olhos perspicazes de coruja, como que vistos lá ao fundo num precipício, e o seu rosto magro fazia um V invertido desde o topo do nariz até aos cantos da boca. Era de porte esquelético e vestia sempre saias compridas que chegavam aos tornozelos. Velha, solteirona e feia, feia como a padeira de Aljubarrota, que diziam ser muito feia. Não sorria, nunca sorria, e era muito rígida e muito pontual. A sineta tocava sempre na hora exacta, nem mais nem menos um minuto. Quem chegasse atrasado era imediatamente posto de castigo ou brindado com uma tarefa difícil.
Mas o que mais assustava os alunos naquela Dona Balbina era a sua mão direita: não tinha cinco, nem seis, tinha sete dedos! Sete dedos!
Olhar uma mão assim produzia em nós um calafrio na espinha. Tinha o polegar, o indicador, o médio, o anelar, o mindinho e mais dois sem nome. Eu achava que se lhe podiam chamar o minúsculo e o minusculozinho. Sete dedos!

Miminho,
Seu vizinho,
Pai de todos,
Fura bolos,
Mata pulgas e piolhos!

Cinco dedos, cinco tarefas. E para os outros dois? Este recitativo que a minha avó me ensinou em criança não se podia aplicar a ela, pelo menos à mão direita. Um estalo com esta mão devia doer por dois ou três. Eu equiparava a professora com a famigerada padeira de Aljubarrota, que também supunha ter sete dedos. Mas isso era uma confusão minha. A Dona Brites de Almeida, mulher ossuda e muito feia, diziam, tinha seis dedos em cada mão e matou, isso sim, sete castelhanos, à pá, que se haviam escondido desnorteados e esfomeados dentro do seu forno, naquela tarde de Agosto de mil trezentos e oitenta e cinco. Sete castelhanos, sete dedos. A confusão estava no número sete.
A Dona Balbina não seria capaz de matar sete, nem cinco, nem dois, nem sequer um dos seus alunos, mas aquela mão direita desconforme e aberrante tinha sobre nós um poder excepcionalmente dissuasor. Sobretudo quando a erguia no ar fazendo ameaças disciplinares, ou agarrava com ela a vara de castanheiro, ou a grossa régua com mais de meio metro de comprido.
Como era possível uma professora ter sete dedos? Que utilidade tinham? Sete dedos dariam jeito a uma dactilógrafa, por exemplo, ou a um tocador de acordeão, a um pianista. Numa professora, era pavoroso. Devia ser proibido haver professores com sete dedos. Devia ser proibido haver Donas Balbinas. Esta Dona Balbina usava e abusava da sua mão, tinha consciência que era uma mão com poderes.
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1 comentário:

  1. Uma professora com sete dedos deve ser algo terrível nessa altura tão susceptível que é a infância. E o tema está muito bem escolhido, se bem que o prefiro o Indiscipline, claro está.

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