domingo, 7 de junho de 2009

J.N.R.J.

A pouco e pouco entravam mulheres, crianças e alguns homens. Muitos destes ficavam na rua, sentados ao sol nos degraus do pelourinho, debaixo das árvores ou na taberna. A igreja deles era ali e o deus deles era líquido que escorria dos cascos de pinho para a garganta. As pessoas que iam entrando na igreja benziam-se na água benta das pias, à entrada, faziam a genuflexão com o sinal da cruz antes de se enfiarem em fila nos bancos únicos e compridos, ajoelhavam-se, faziam uma breve oração e depois sentavam-se em silêncio.
Em cada lado da igreja, um santo. Esses dois santos mantinham o ar andrajoso e empoeirado de sempre. Um segurava um livro e uma chave; o outro, um livro e uma caveira na palma da mão. Ambos tinham os olhos lisos e pareciam cegos. Assustavam. Mas a Nossa Senhora, vestida de azul e branco, tinha aspecto de lavada e cheirar bem. Heras verdes e tenras, malmequeres e gladíolos às cores escondiam-lhe o pedestal e quase a nuvem branca donde se erguia. Parecia que tinha chovido sobre ela uma chuva de Primavera. Parecia tão fresca. Parecia tão doce, que a minha vontade secreta era cheirá-la e lambê-la como a um chupa-chupa. Bebê-la como água pura da fonte. (Estava com sede e tinha a garganta seca). Aliás, se pudesse beberia todo o interior da igreja. A frescura da pedra. O branco bebível do azulejo. A luz. A luz que inundava a nave. A nave imensa onde podia imaginar pássaros a voar, andorinhas brincalhonas rasando a cabeça das pessoas e o corredor central onde quase tocavam com a ponta das asas.
Malmequeres e jarros de uma brancura imaculada enfeitavam o altar, onde uma almofada sustinha um grande livro de capa vermelha e folhas que reluziam como oiro. Duas velas de tamanho desmesurado, uma de cada lado do altar, ardiam silentemente. Se eu voltasse dali a um mês, ainda estariam a arder, era essa a impressão que tinha. Se voltasse dali a um ano, ainda estariam a arder. Se voltasse dali a um século, ainda estariam a arder.
Enquanto a missa não começava, eu bebia a frescura que flutuava no imenso espaço da nave, e aquele Jesus Cristo de tamanho natural, preso a uma cruz lá no alto, sobre o altar, não mexia uma palha para sair dali. De tanga a tapar-lhe o ventre, coroa de espinhos, rosto descaído, inclinado para a direita, a sangrar, joelhos a sangrar, o flanco também direito com um buraco também a sangrar, mãos e pés pregados na madeira. A sangrar. O corpo belo, musculoso, ossudo, estático, suspenso na sua própria agonia.
J.N.R.J. Sobre a cabeça. Jesus não ri... já... jé... ji... jó... ju... jamais.
Jesus Não Ri Jamais.
Jesus Não Recebe Jorna.
Jesus Não Come Jeleia.
Come não começava por erre. Nem geleia por jota.
Se Jesus fosse um Homem Pássaro, como eu, não teria deixado que o soldado romano lhe espetasse a lança no flanco direito. Ou teria? Nem sequer se teria deixado crucificar. Ou teria?... Fosse como fosse, aquele Jesus parecia-me bastante real. Ainda me recordava da primeira vez que entrei na igreja, já com essa idade dos porquês, e ter ficado intrigado e ao mesmo tempo assustado com aquele homem nu ali espetado na cruz. Num sussurro, perguntara à minha avó se era um homem verdadeiro e ela, noutro sussurro, respondera-me que sim. Sim, é um homem verdadeiro.
Durante toda a missa não despeguei de lá o olhar. Só mais tarde, algumas missas mais tarde, tive consciência que aquele homem, a sangrar e em agonia, era, afinal, uma estátua. De quê, não sabia – mas era uma estátua, e pude suspirar de alívio.
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