quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ao Homem Metade

Vou contar, muito resumidamente, a história do Homem Metade (era assim que o «tratava» quando pensava nele). Eu tinha onze anos e estava prestes a dar-se a revolução de Abril de 1974 quando passei a conviver mais assiduamente com ele, e não tenho memória alguma de quando ainda era um Homem Inteiro, normal como todos os homens.
O pai dele tinha uma carpintaria. Assim que lá entrava, o cheiro a árvores cortadas invadia-me os pulmões. Era um cheiro a bosques ceifados. Havia pilhas de madeira e montes de aparas por todo o sítio. O chão era de serradura, andava-se ali nas nuvens. Mas uma serra mecânica de lâmina longa, cheia de dentes, lá ao fundo, causava-me arrepios na espinha quando dividia tábuas em duas, muito perto das mãos que as seguravam. Essas mãos já não tinham alguns dedos. A todos os carpinteiros que eu conhecia faltavam-lhe dedos. Ou o polegar e o indicador, ou só a ponta do polegar e o indicador, ou o mindinho e o anelar. Ao pai do Homem Metade faltavam-lhe dois numa mão e a ponta do indicador noutra. Os que ainda sobravam eram quase todos redondos na ponta, como se a pele tivesse sido esticada e presa com pinças, e praticamente sem unhas. E a serra ceifa-dedos zunia ali tão perto deles, faminta. Não me aproximava muito.
Um dia, como sempre, perguntei pelo filho, o Homem Metade. Tinha, agora, mais confiança com ele e passava muito tempo a escutar as suas histórias. Tratava-o por tu. Às vezes falávamos de pássaros, dos de cá e dos que ele vira por África, e às vezes não falávamos de nada, ficava só a vê-lo colar os fósforos queimados, construindo as suas maquetas com muita paciência. O velho disse-me que o filho estava no lugar do costume, e o lugar do costume era uma casinhota nas traseiras da carpintaria, virada para um bosque em cuja clareira passava um riacho e onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa em lajes de pedra. O Homem Metade passava lá dias inteiros, fechado.
Atravessei a carpintaria, os pés sempre sobre o tapete de serradura ancestral. Na casinhota, bati à porta e abri-a sem esperar pela voz de dentro. Era sempre assim que fazia. Entrei e eis o Homem Metade. O Homem Cadeira. O Homem Sem Pernas. O Homem Tronco. O Homem Meio-Homem. De qualquer modo, um Super-homem. Debruçado numa bancada cheia de ferramentas, bocados de madeiras e caixas vazias, colava fósforos na proa de uma caravela.
Lá vem a Nau Catrineta
Que traz muito que contar.
Ouvi agora, senhores
Uma história de pasmar.
Aproximei-me. O Homem Metade esteve três anos na Guiné. Foi para lá (ainda não era Metade) com vinte e cinco primaveras e voltou sem as duas pernas. As duas pernas inteiras, sem tirar nem pôr. Uma bazuca, numa emboscada, tinha-lhe traçado o destino. Oito colegas morreram. Guerra era guerra. Às vezes contava histórias horrendas. O melhor amigo morrera-lhe nas mãos, com os miolos a saírem pela nuca. Viu pessoas queimadas, trucidadas e completamente desfiguradas, sendo impossível reconhecê-las. Um dia cercaram uma aldeia e metralharam sobre tudo que se mexesse. Velhos, mulheres, crianças. Nem o capim ficara de pé. Estavam treinados para matar e estavam a servir a Pátria. Guerra era guerra. Mas agora a sua guerra era outra. Uma guerra surda contra o tempo. Sem as duas pernas, preso a uma cadeira de rodas, a sua guerra travava-se dentro daquela casinhota entre caixas de fósforos, colas e lixas, madeiras finas, pregos e martelos. O dia inteiro fechado. A caravela tomava forma com todos os detalhes. O Homem Metade, pouco falador, olheirento, a barba como um matagal a crescer, tinha jeito para aquilo. Em cima de mesas e prateleiras viam-se a Torre de Belém, o Santuário de Fátima, o Castelo de Porto de Mós, o Castelo de Leiria, o Mosteiro da Batalha e a igreja da aldeia. Tudo em fósforos queimados e com os devidos pormenores. Havia um carro de bombeiros. Uma locomotiva. Um hidroavião semelhante ao de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Bonito. E havia outras maquetas de monumentos que eu não reconhecia de lado nenhum. Perguntei-lhe se a caravela era a Nau Catrineta. E ele: sim, que podia ser.
Pela janela aberta entravam feixes de luz. Viam-se nuvens brancas que eram couves-flor semeadas pelo céu. Fui directo ao assunto que me levava, desta vez, ali: queria uma porção de cola de madeira. Que podia levar a que quisesse, mas era para quê, podia saber?... A ele, não podia mentir. Não era capaz de o fazer ao Homem Metade. Viver agarrado a uma cadeira de rodas para o resto da vida era já um castigo suficientemente grande. Dizer-lhe uma mentira, por mais insignificante que fosse, não fazia sentido. – Vou fazer umas asas – disse-lhe eu, orgulhoso. Era um segredo meu, mais ninguém sabia. Nem os meus colegas da escola.
- Umas asas? De papel, para brincar?
- Não, de penas, para voar como Ícaro – respondi, e o Homem Metade começou a rir-se e fez marcha atrás para alcançar um alicate. Cabeça, tronco e membros sem-membros. Só braços e calças vazias dobradas sobre o assento salpicado de aparas e lascas de fósforos. Eu não me estava a ver sem pernas. Nada de corridas, nada de bola, nada de trepar árvores, nada de nada. Se me chamassem para a guerra, fugiria antes que me ceifassem as pernas.
- Para voar? – o Homem Metade deixou de colar fósforos e fixou-me atentamente. – Sabes que quando tinha a tua idade também pensei nisso? É verdade. Fazer umas asas para voar. O meu sonho era poder voar. Como Ícaro.
- Eu vou fazê-lo – disse, convicto. – Vais ver!
- E vais atirar-te de onde, para poderes voar?
- Ainda não pensei nisso – eu olhava para as maquetas. – Talvez da torre da igreja.
- É o ponto mais alto da aldeia, de facto. Mas não te esqueças que quanto mais alto subires... mais alta é a queda.
- Não tenho medo das alturas – disse eu. – Quero ser aviador, quando for grande, e além disso vou fazer umas asas tão perfeitas como as de um pássaro.
- Vais ser o homem mais famoso da nossa aldeia... – o Homem Metade gozava comigo; entendia-o. Quando se é novo, com onze anos, todas as fantasias são permitidas. Ele também sonhara com aquilo. Voar. Agora todos os sonhos lhe estavam vedados. O mundo dele resumia-se ao que estava dentro da casinhota. E ao que conseguia ver de longe: largou a caravela, fez rodar a cadeira, tirou uns binóculos duma gaveta e dirigiu-se à janela: ficou assim demoradamente a olhar: lá para o fundo, para a clareira do bosque onde corria o riacho. Perguntei-lhe o que estava a ver. – Pássaros – respondeu, sem desviar os binóculos. Pedi se podia ver e ele, laconicamente, disse para eu esperar. Quando peguei nos binóculos, assestei-os lá para o fundo e procurei pássaros na copa das árvores. As árvores estavam muito próximas, muito folhosas, muito verdes, mas não havia pássaros. Se houvesse, estariam muito bem escondidos. Baixando as lentes para o riacho, vi, isso sim, três mulheres batendo com a roupa nas lajes. Não eram muito novas nem muito velhas, deviam ter a idade do Homem Metade. Tinham os pés na água e as pernas nuas até muito acima do joelho, a pele voluptuosamente clara e luzidia com os reflexos do sol. E voltei a procurar os pássaros. O Homem Metade regressara à Nau Catrineta e queimava mais uma caixa de fósforos. Tinha o silêncio como cúmplice. Não existiam palavras para a sua dor.
- Um dia vais emprestar-me os teus binóculos? – pedi eu; ele não disse nada. Colou mais um fósforo. Perguntei-lhe se já alguma vez tinha visto um cuco e continuei a espiolhar as árvores. Vi um melro do tamanho de uma águia. Tinha, no bico amarelo, uma minhoca do tamanho de uma cobra. O bicho a contorcer-se. E de repente desapareceu. Quando eu disse «estou a ver um melro», contentíssimo, já o pássaro tinha sumido.
- Sabes? Nunca vi um cuco. É por isso que quero viver nos bosques, e ficar à espera. Posso ganhar raízes, mas hei-de ver um cuco. Se me emprestares os binóculos, um dia destes – e ele, claro, emprestava-mos. – É mais interessante assim, vê-se tudo ao pormenor. Também posso ver como os pássaros constróem o ninho, como começam do nada com duas ou três palhas e o vão tornando redondo e fundo e forrado com penas macias e quentes. Não achas que os ninhos, em geral, são uma obra de arte? Eu acho. Depois é ver os ovos eclodirem e os filhotes crescerem de goelas no ar, e depois deixarem o ninho para darem o primeiro voo. Como é que um pássaro sabe que sabe voar? Já pensaste nisso?
O Homem Metade não estava ali. Corria por campos de papoilas e tremocilhas e trepava oliveiras em busca de ninhos. Enlaçava as pernas nos troncos mais compridos das árvores e subia como um macaco. Empoleirava-se e fazia equilíbrio nos ramos horizontais. Tinha onze ou doze anos, como eu… E a caravela à espera de fósforos.
- Mas já alguma vez viste um cuco? – insisti, arrumando os binóculos. O Homem Metade caiu em si. Não. Nunca tinha visto um cuco, se bem se lembrava. Em África vira aves de todas as cores e tamanhos, mas um cuco nunca tinha visto. Só ouvido o cucu ao longe, e a última vez fora há pouco tempo.
- Esse pássaro fascina-me, tem qualquer coisa de mítico. É como o Gigante Adamastor. – Não soube por que comparei o cuco ao gigante lendário de Camões. Talvez por causa da caravela de fósforos. Depois tirei duma barrica para uma lata a cola branca que precisava. Parecia leite espesso. O Homem Metade ainda me deu uma trincha. E agradeci e fui-me embora, porque tinha pressa de construir as minhas asas. Parti a pensar no Homem Metade. Era uma boa pessoa e dar-lhe-ia asas, no tal jogo imaginário que eu tinha: que era dar asas às pessoas boas, sendo eu – coisas de miúdos – o super-herói Homem Pássaro com super-poderes. Asas, pois, para o Homem Metade. As suas mãos faziam maravilhas. Aqueles monumentos todos, feitos com tanta paciência e dedicação, ao mais pequeno pormenor, janelas manuelinas, coruchéus e gárgulas fantásticas, a igreja da aldeia com os cata-ventos e todos os sinos, pequenos e grandes, no campanário. O hidroavião Lusitânia, que fez a travessia do oceano Atlântico de Portugal para o Brasil, pela primeira vez na história da Humanidade, por ares nunca dantes navegados, tinha todos os detalhes. Nem lhe faltavam as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo. Ele era um verdadeiro artista, fazia obras de arte com as mãos.
E parti contente por tudo, pelos binóculos que um dia havia de levar, pela lata de cola, pela trincha e sobretudo pelas obras de arte do meu amigo da cadeira de rodas, mas não reparei que o deixara a chorar. Eu tinha onze anos, não podia reparar. As olheiras do Homem Metade tornaram-se lagos insalubres. Grossas e silenciosas lágrimas correram-lhe como rios para o matagal de pêlos da cara. Era sempre assim, soube mais tarde. O Homem Metade regressava à infância para correr pelos campos e ir aos ninhos e trepar as árvores. Longa e dolorosa viagem no tempo, essa. Eu não sabia metade da história. O Homem Metade dormia pouco, e quando dormia acordava sobressaltado com pesadelos que se passavam em África. Crianças negras sem rosto corriam para ele e traziam-lhe as pernas de volta, mas as pernas enchiam-se de vermes e apodreciam num instante. Então as crianças riam, mesmo sem rosto, e ele despejava-lhes tiros e tiros de metralhadora para se vingar da brincadeira de mau gosto. Acordava com suores frios e levava logo as mãos às pernas, mas elas não estavam lá. O pesadelo era quase sempre o mesmo. Também sonhava com o melhor amigo. Via sangue e miolos a escorrerem pelo corpo e o amigo dizia-lhe que estava no Inferno, pedia-lhe que o levasse para o Céu. O Céu estava muito, muito longe. Um bater de porta mais brusco deixava-o nervoso. Uma sirene de bombeiros também. Todos os ruídos fora do normal o faziam reviver a guerra. Um miúdo a correr deixava-o destroçado. A guerra continuava dentro dele. E assim a Nau Catrineta foi sacudida por violenta tempestade. A ira de Adamastor também existia ali, dentro da casinhota. Eu ainda não sabia metade da história.
Mas o Homem Metade, sendo ele, literalmente, metade de um homem, passou a ser para mim o exemplo máximo da coragem e da abnegação humanas. Como se deve imaginar, não cheguei a voar como Ícaro, nem sequer concluí «as minhas asas» de onze anos. Simplesmente, para o resto da vida, conhecer o Homem Metade... tornou-me diferente.
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