domingo, 12 de julho de 2009


Corre, miúdo, corre

Na minha infância, de facto, reconheço terem acontecido coisas impossíveis de lembrar, outras de que formo uma vaga ideia, e ainda outras claramente distintas.
Lembro-me particularmente das noites de trovoada e do mutismo da família, à espera de sabe-se lá o quê... A minha avó rezava.

Santa Bárbara bendita,
No céu está escrito
Entre a cruz e água benta;
Nos abrande esta trovoada
Para bem longe...

(Faço aqui um esforço de memória)

Onde não haja
Ovelha com cordeirinho,
Nem cabra com cabritinho,
Nem folha de figueira,
Nem nada que o Senhor queira!

Qualquer coisa assim. E também me lembro das outras noites, dos serões à volta da lareira, da casa cheia de fumo e os olhos a arder, a chorar por nada e por ninguém, e sempre e de novo as velhas, a minha avó, as irmãs da minha avó e as amigas da minha avó – essas velhas faladoras e bisbilhoteiras, eternamente com uma história para contar. Para elas, ou nelas, a língua seria a última parte do corpo a morrer, assim como a última a decompor-se. As velhas tinham sempre uma palavra a dizer, e mais isto e mais aquilo, e era assim e era assado, e foi fulano e foi sicrano... Os velhos não eram bem-bem assim. Os velhos fechavam-se na sua concha e a morte era esperada com paciência de Job, ainda que, talvez, com um sentimento de impotência e, por resultado, uma raiva muda. Elas, não; elas falavam, falavam sempre, mesmo que repetissem a mesmíssima coisa dúzias de vezes. Eram incansáveis. Eram imparáveis. Parecia-me que a única função que tinham no mundo era falar, e que a minha era ouvi-las. O espantoso era que elas, as velhas da minha infância, eram umas exímias contadoras de histórias – histórias fantásticas, do arco-da-velha!...
Nunca cheguei bem-bem a perceber por que carga de água elas nos contavam essas coisas de arrepiar. Mas nós, miúdos, gostávamos a valer. Eram histórias de pessoas com poderes estranhos e diabólicos, de espíritos e almas do outro mundo, cenas macabras que se passavam quase sempre à noite. Ficávamos a magicar, a tentar ver tudo isso com os nossos próprios olhos, embora assustados que nem ratos. Mesmo assim, gostávamos. E as velhas prosseguiam, inflexíveis, com aquele ar sabedor e experiente de quem diz que já passou por muitas atribulações na vida.
Mas, enfim, na minha infância, as histórias que me impressionaram sobremaneira e ficaram melhor gravadas no cérebro foram sem dúvida as histórias de lobisomens, ou, como nós dizíamos – como elas diziam –, belisomens.
As velhotas nunca nos contavam como eram realmente esses monstros. Porque, na verdade, também elas jamais viram fosse lá o que fosse. Daí que tivéssemos uma vaga ideia e os imaginássemos como homens que, à meia-noite e à lua cheia, inexplicavelmente, se transformavam em algo semelhante a lobos. Caminhavam de pé, tinham o corpo repleto de pêlos e cabelos, porventura ainda envergando roupas em farrapos, garras de lobo, dentes e colmilhos de lobo, talvez com laivos de espuma, talvez de sangue (conforme), olhos brilhantes e fendidos – uma cara feia, horrenda, ameaçadora – enfim, uma criatura metamorfoseada de um horror indescritível, deambulando e correndo no escuro da noite, à lua cheia, sequiosa de carne, sangue!... E também constava que, quando alguém se visse em apuros – embora, em rigor, isso jamais tivesse acontecido –, a única salvação era subir uma árvore e, aí, com um objecto afiado, tentar picar a besta até que se desse a metamorfose lobo-homem.
Homem-lobo. Lobo-homem. Lobosomem. Lobisomem.
Era arrepiante, medonho. Ficávamos a magicar coisas e loisas, aterrados, e na cama, à noite, jamais ousaríamos relancear os olhos pela janela. E quando os gatos, com cio, na rua, miavam como bebés a chorar desalmadamente, então nós, miúdos, encolhidos debaixo das mantas no frio de Janeiro, tornávamo-nos minúsculos, puros esfregões de medo, sem pinga de sangue, e não nos atrevíamos a abrir a boca, dizer: «Mãe!», dizer: «Mãe, tenho medo!» Talvez julgássemos que os bebés berravam por terem sido abandonados àquela hora da noite, e que estavam prestes a ser devorados, ou pelos lobos ou pelo lobisomem. Nesses momentos terríveis, o que queríamos ser era ser homens, porque os homens, regra geral, eram valentes e não tinham medo de nada. Pelo menos era essa a ideia que fazíamos deles, pelo que víamos ou pelo que eles próprios contavam. Depois, tínhamos sonhos que eram verdadeiras torturas psicológicas. O lobisomem, ou, vá lá, no mínimo o homem feio e mau, era um personagem quase constante do nosso fantástico mundo onírico. O papel dele era perseguir-nos, o nosso era fugir. Tínhamos sonhos que eram verdadeiras perseguições. Mas o monstro, porém, apanhava-nos. Embora nos escondêssemos bem, mesmo que nos escondêssemos em guarda-fatos, descobria-nos sempre. Talvez ele nos visse esconder, porque, inexplicavelmente, quanto mais dávamos às pernas, menos corríamos. Era como estar suspenso no ar e tentar correr; era como aqueles ciclistas que treinam sobre dois rolos, que se estafam a pedalar e estão sempre no mesmo sítio...
Mas entrementes fomos crescendo, crescendo, e, à medida que nos fazíamos rapazes crescidos, dávamos cada vez menos importância às histórias das velhas – no nosso lugar estavam outros miúdos, que cresceriam e que dariam lugar a outros miúdos... sempre assim. Talvez que, ao crescermos, não tivéssemos mais paciência para aturar as velhas; não, não tínhamos mesmo. As nossas aspirações eram agora outras: as raparigas. A atracção pelos belos cabelos de Preciosa. A fragrância da pele morena de Sara. A curiosidade pelo peito que ganhava forma de Maria... Também já não tínhamos mais a ocasião de estar ao pé das velhas e ouvir as suas histórias. Estas, porém, permaneciam em nós – permanecem –, porque a alma humana é uma arca bem funda onde se guardam todas as ninharias. Pode mesmo chegar a altura em que queremos deitar algumas fora, mas estão de tal modo ligadas a nós que não podemos, não conseguimos... E tornamos a fechar a arca e outro dia qualquer subiremos ao sótão... Sempre, sempre assim...
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2 comentários:

  1. Quantas vezes subo ao sótão das memórias, tentando recuperar as divertidas histórias da minha avó. Porque as dela, não tinham lobisomens nem homens maus, mas eram recheadas de personagens pitorescas de um Minho antigo e bem disposto. Infelizmente, o sótão está muito desarrumado, faltam peças, e não consigo montar um puzzle coerente. Mas o sorriso da minha avó está pintado dentro da minha cabeça e as suas gargalhadas ecoam felizes na minha alma. Que saudades, avó.
    Obrigada, Paulo Assim, por este lindo texto.

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