sábado, 25 de abril de 2009


O rio


Foi numa noite de lua cheia que tomei a decisão...
Porquê de lua cheia, não sei. Mas ali estava mais uma dessas noites sagradamente misteriosas em que a lua cheia do seu trono vigia e rege as marés, a fecundidade das plantas, dos animais e até da própria Terra mãe no seu todo. E em alguns homens também consegue libertar a verdade da sua essência primitiva. É ela a amante dos lobisomens, pois é a única a quem se revelam verdadeiramente, a quem adoram: a sua bela e distante rainha da noite, a sua confidente sábia e muda.
Aquela foi também mais uma das minhas noites em que vagueei cansado de contradições, com o espírito demasiado nublado e o corpo tão pesado e ao mesmo tempo tão ausente. Senti em mim a ferocidade acutilante na multidão de vozes gritando-me e impossibilitando o sono e a paz. Tudo girava à minha volta, e uma barreira inexplicável teimava em voltar sempre, fazendo-me temer perder tudo e a própria razão, receando e tendo a certeza de não poder mais retomar o meu quotidiano vulgar de horários, pressas, regras, obrigações e tantas proibições. Os meus amigos, a maior parte deles, tomavam drogas, consumiam-se em cigarros e afundavam-se em cerveja, uísque e outras bebidas chamadas espirituosas, com o ar, dir-se-ia, mais felizardo do mundo... Não era assim que passava o meu tempo livre, embora também não me enclausurasse como um monge que pretende a santo. Para eles, essa pequena parcela de tempo era de fuga, mas de uma fuga alienatória que os fazia pensar: «Ao menos, divirto-me»... Era isto viver?
A este respeito, assaltava-me frequentemente um sonho repetitivo: fazia calor e todos esses meus amigos tomavam banho num rio, um rio bastante peculiar, de água choca, nauseabunda, onde boiavam excrementos de esgoto, ratazanas pestilentas e cadáveres de animais monstruosos em decomposição, uma verdadeira cloaca, um rio digno do pincel de Jerónimo Bosch; mas eles divertiam-se, mergulhavam e chapinhavam como crianças felizes, e, quando emergiam de cabelos a escorrer tripas e vísceras fedorentas, até me incitavam gritando: «Aproveita enquanto é tempo!», «A água está uma delícia!», «Vem, não sejas parvo!» e acicates do género... Sentia um desejo visceral, imenso, de me atirar de cabeça, mas não o fazia; dizia que para a semana, sim, daria uns mergulhos – coisa dramaticamente absurda e confrangedora, pois algo me garantia interiormente que no próximo fim-de-semana o termómetro iria baixar drasticamente e, portanto, fosse uma loucura tomar banho naquele rio...
Estaria a ficar louco?
A frustração tomava conta de mim como uma sombra ou um limbo pegajoso, e aquela noite de lua cheia fora decisiva. A mesma lua que move marés e faz germinar a semente escondida na terra, a mesma lua que inspira os poetas e desperta a fera que há em nós, também ela me iluminou o espírito e fez subir a montanha até ao refúgio da bruxa que eu tanto temia desde criança.
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