terça-feira, 28 de abril de 2009

A minha Vespa e os Vagabundos do Dharma de Kerouac

Isto é complicado, esta coisa do trabalho e do dinheiro, este sistema, esta engrenagem. Sei que somos todos moscas que vamos cair na mesma e única teia. E o problema está aí: ganha-se algum dinheiro, mas somos prisioneiros todos os dias, todos os meses, todos os anos e toda a vida. Foi assim por que tive de carregar pesados poceiros de uvas por encostas de barro para poder comprar a minha tenda e a minha mochila; e foi assim por que tive de descarregar a ombro milhares de sacos de cimento de cinquenta quilos e passar horas e horas de tédio, enfiado num armazém poeirento, para poder comprar, a prestações, a minha Vespa Piaggio (faça-se jus à marca) e com a qual partia agora ao encontro da Leandra e, depois, rumo à serra. Feliz e bem disposto...
A minha Vespa... Que máquina, a Vespa! Não andava muito, ia até aos setenta, pois o motor era de cinquenta centímetros cúbicos, mas levava-me sempre ao meu destino e nunca me deixou ficar a pé. Tive inúmeros furos, porém lá estava a fantástica e oportuna roda sobresselente para me salvar: em quinze minutos resolvia o problema e lá ia eu todo encantado da vida. Maravilha das maravilhas! (Parece que a marca me pagou uma choruda comissão para incluir aqui o nome da motoreta e dizer dela mil encantos – eh! eh! –, mas não, nada disso, que fique bem entendido).
Rigorosamente, não escolhi coisa alguma. O meu pai é que fez o negócio com o homem da oficina, como se fosse para ele, como se fosse ele quem iria pagar as letras durante dez longos meses. Tratou de tudo quase sem dizer nada, como era seu costume, autoritariamente. Só disse: «Tal dia vamos buscar a mota... É uma Vespa!» E eu: «Vespa? Mas quem lhe disse que eu queria uma Vespa?» Fiquei logo desapontado e, mais uma vez, surpreendido pelo autoritarismo todo-poderoso de meu pai. Mas não contestei; pensando melhor, até me agradava ter uma lambretta, tinha estilo, fazia-me sonhar com Itália, Roma, o Coliseu, a Piazza di Spagna cheia de pombas a esvoaçar ao sol, spaghetti, Veneza e gôndolas, e muitas Vespas pelas ruas estreitas ou nas vias rápidas, rumo à praia, com sensuais namoradas morenas – italianas dos contos de Moravia –, atrás, de cabelos compridos ao vento. Brrummm!... Arrivederci!... Alberoni disse que ela era feminina e roliça e que simbolizava um estilo de vida descontraído, liberto de medições de status ou de poder... Já um mito... Enfim, ter uma Vespa tornava-me diferente ou marcava a diferença entre os meus colegas, porque todos eles tinham motas iguais ou quase parecidas. Andava pouco, tudo bem; mas era bom assim, senão ainda acabaria por me matar numa curva qualquer...
Na oficina, lá estava ela, uma bela motoreta resplandecente e branca. «Parece mesmo uma vespa!» – exclamara, em 1946, Enrico Piaggio. Ao lado, outra igualzinha, mas preta. «É esta» – disse o meu pai, apontando para a branca. Resumindo e concluindo, eu estava ali só por estar, visto que as decisões já tinham sido tomadas. Sacana de pai!... Mas a preta atraía-me sobremaneira e, no último instante, mesmo antes de se fechar o negócio, disse:
- Prefiro a preta.
- A preta?
- Sim, a preta; é uma cor como outra qualquer.
- Pronto, a preta – aquiesceu o meu pai, acrescentando: – Podes-me escolher tudo que seja preto, menos a nora!...
O homem da oficina riu-se até tossir e lançar um escarro amarelo, sofredoramente, para um canto escuro de óleo e sucata. Parece que meu pai tinha a fama de ser o animador de festas e de serões com a sua jocosidade, embora, na prática, fosse uma pessoa tímida, contando anedotas mais ou menos divertidas ou dizendo piadas mais ou menos mordazes. Eis ali um vestígio disso, com uma nuance característica da sua geração racista.
- Que mal têm as mulheres pretas? – retorqui, algo indignado. – São tão inteligentes como as brancas e, na cama, são porventura melhores que as brancas.
Isto soava a ideologia machista e fora dito sob a influência dos inúmeros calendários de belas mas perturbantes mulheres-só-seios, pendurados um pouco por toda a parte, e que me davam a volta à cabeça. Faziam-me pensar que jamais conseguiria andar com uma mulher daquelas, porque todos os homens lhe lançariam, na rua, olhares cobiçosos... O que me levou ainda a concluir, mentalmente, que um belo e volumoso par de seios fica sempre bem... na mulher dos outros!...Ah! Mas não era bem assim que eu queria expressar os meus sentimentos em relação às mulheres, fossem elas pretas ou brancas. O que queria dizer era que, fisicamente, as mulheres de cor podem ser muito mais belas que as brancas, partindo do princípio que todas as mulheres são belas. Como uma scooter preta pode exercer muito mais fascínio que uma scooter branca.
A minha era preta, agradavelmente preta, e lá ia eu a cavalo nela ao encontro da Leandra, feliz, bem disposto e seguro. Seguro?... Não tanto. Incomodava-me uma estranha sensação de esquecimento, algo por fazer ou algo por trazer... O meu sentido número não-sei-quantos dizia-me: «Pensa bem, rapaz, porque te esqueceste de qualquer coisa... O que será? o que será?» Dei uma volta ao miolo e, quando descobri, dei meia volta à estrada e regressei a casa. Em cima do divã estava a minha bíblia, esqueci-me dela ali, aberta, capítulo 34, onde pude reler, como num flash de fotografia:
Que é um arco-íris, Senhor?
Um arco
Para os humildes.
Sempre a correr, enfiei o Kerouac na mochila e parti.
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