domingo, 4 de abril de 2010

A mosca


- A tua irmã?
A nossa madrasta irrompera furiosa pelo quarto adentro. Como uma tempestade. Ou como um insecto perigoso, uma vespa assanhada. E eu, sentado a estudar números inteiros e fraccionais, limitei-me a um gesto silencioso com o queixo. A mulher foi direita ao guarda-roupa, abriu-o e, com brutalidade, puxou a miúda por uma orelha.
- Foi sem querer! – exclamou a minha irmãzita.
A primeira palmada quase não a sentiu, tenho a certeza disso, mas a segunda queimou-lhe a carne das nádegas que tremiam como gelatina. Nas mãos da mulher, a minha irmã como que rodopiava conforme uma boneca de trapos.
Eu fingia que estudava. A mãe da Ana foi às compras com uma nota de cinquenta escudos; gastou dois quintos do dinheiro numa prenda para a Ana e com o restante comprou um quilograma de bacalhau...
- Aprende a não mexer onde não deves! – berrou a irascível mulher.
...Quanto custou a prenda da Ana?
Uma terceira e uma quarta palmada deram fim ao castigo.
- Agora quero os trabalhos de casa feitos. Os dois! Sem erros, sem brigas, sem nada. Ai de vós quando eu chegar!
A mulher saiu do quarto, mas, assim que saiu, voltou a entrar e disse, sempre a agitar um dedo ameaçador no ar:
- Se pensam que me vou embora e fazem o que querem, estão muito enganados. Porque eu vos digo já: posso transformar-me em mosca, passar pela fechadura e ver o que estão a fazer. Por isso, cautela, muita cautela!
Saiu e fechou a porta. Ouviu-se a chave a desandar, depois os passos dela a afastarem-se, descendo as escadas, e o estrondo da porta do átrio.
A minha irmã estava sentada na cama com as mãos entre os joelhos e eu ousei olhar para ela. Tinha dois riscos de lágrimas nas faces e lambia o ranho que gotejava do nariz. Fungava intermitentemente.
- Vai buscar um lenço – disse eu.
Ela fungou, à guisa de resposta, lançou a língua ao lábio superior repleto de mucosidades nasais e deixou-se ficar quieta.
- Eu bem te disse para não mexeres no frasco do mel...
- Foi sem querer. Escorregou-me.
- Ela quer lá saber disso!
- Detesto a nossa madrasta!
- É a nossa segunda mãe – respondi-lhe, para a reconfortar.
- Não, não e não! É uma pessoa ruim. Detesto-a!
E fungou, cruzando os braços. Eu também a detestava. Tinha saudades da nossa verdadeira mãe e culpava o nosso pai por se ter juntado com aquela mulher. Estava sempre a ralhar connosco e fazia-nos a vida negra com tanta regra e tanta exigência. Agora tinha os trabalhos de casa para fazer e, para além disso, fazê-los impecavelmente. E ajudar a minha irmã nas cópias e nos ditados, a letra bem feita e sem erros, nem borrões de tinta permanente. Por isso, era melhor meter mãos à obra.
Algum tempo depois, deixámos os deveres e fomos à varanda. Ouvimos a algazarra e os gritos de alegria dos miúdos que brincavam no pátio do condomínio. Tratava-se de um conjunto de edifícios velhos em forma de quadrado com uma entrada em arco que dava para a rua principal da vila. Havia estendais de roupa branca e desbotada por todas as varandas, ou só com molas ou sacos de plástico, manjericos e sardinheiras, outras plantas que caíam como cascatas verdes, canários e bicos-de-lacre engaiolados, gatos dorminhocos e cães a ladrar, homens fumando e ouvindo relatos de futebol na telefonia e velhos a cuspir o catarro para a calçada do pátio.
Olhámos para baixo e vimos os nossos amigos a correr atrás duma bola, eles, elas a saltar à corda. Suspirámos fundo. Sábado, e nós ali fechados... Desejávamos tanto estar lá em baixo!
- Então? – gritaram alguns assim que nos viram debruçados na varanda.
- Não podemos.
- Vá lá!
- Estamos de castigo.
- Temos pastilhas elásticas – disse alguém. – Morango e mentol.
Eu e a minha irmã fitámo-nos um ao outro e engolimos em seco a grande novidade. Há quanto tempo não comíamos uma pastilha?... A nossa madrasta era muito rígida em tudo. No pentear, no lavar, no vestir, no sujar, no comer... As guloseimas estavam fora de questão e sobretudo as pastilhas elásticas, que estavam proibidas naquela casa. Tal severidade deixava-nos terrivelmente angustiados. Homessa! Que mal tinha uma pastilha elástica?...
- Esperem! – exclamei por fim.
Voltei ao quarto e despejei um pequeno cesto de vime cheio de soldadinhos de chumbo, ficando espalhados no chão como despojos de terrível batalha. Duma gaveta retirei um rolo de fio e atei a ponta à asa do cesto. A minha irmã percebeu logo a ideia. E teve uma outra: fez uma bola de papel e enfiou-a no buraco da fechadura. Era uma ideia bizarra.
- Para que é isso? – perguntei-lhe, surpreso.
- Ora! E se ela se transforma em mosca?
- Acreditaste nisso? És mesmo pateta. Tira o papel daí. Ainda estragas a fechadura e ficamos aqui fechados para sempre, e então é que teremos problemas a sério. Pateta!
Contrariada, a minha irmã retirou a bola de papel e fomos os dois para a varanda. Em baixo, no pátio, a miudagem esperava-nos de nariz erguido para o céu. Olhei em redor, cauteloso, para todas as varandas e fiz descer o pequeno cesto meticulosamente. Estávamos num terceiro andar. A garotada, em baixo, bateu palmas e pulou de alegria.
- Uma de cada! – pedi eu, mas como quem segreda ao ouvido.
Quando o cesto chegou ao seu destino, a miudagem formou um círculo em redor com muito alarido e o dono das pastilhas depositou no seu fundo uma de mentol e uma de morango. E, depois, aí vai o cesto para cima, muito cautelosamente para não empeçar nos estendais de algumas varandas. Uma vizinha de baixo, uma mulher gorda e muito anafada, que estendia roupa de molas presas aos dentes, viu o cesto passar-lhe por perto e paralisou os gestos por alguns instantes, como se tivesse visto uma coisa do outro mundo. Viu que éramos nós, do andar de cima.
Com as guloseimas chegadas a bom porto, eu e a minha irmã ficámos radiantes. Fiz um gesto de ok com o polegar para os amigos em baixo, que retomaram as correrias e os jogos de bola. Ah!... E ali estavam as pastilhas elásticas, cujo nome não posso dizer - porque aqui não se fazem anúncios - mas que começava com g e acabava com a, tendo pelo meio um r e um i, e como logótipo a cara de um animal da selva... (Pronto, creio que toda a gente já adivinhou e o melhor mesmo é dizer logo de uma vez: pastilhas elásticas Gorila...) Mãezinha! Quantas pastilhas Gorila com sabor a banana, morango e mentol não comemos nós! Quantos balões não nos rebentaram colados ao nariz! Quantos trocos não surripiámos à carteira da mãe! Quantas dores de barriga não nos fizeram correr para a retrete!... Mas que importava isso? Sim, que importava isso se as saudades eram tantas?
Eu meti a Gorila de mentol na boca e a minha irmã a Gorila de morango. Que êxtase para ambos! Há quanto tempo!... Mastiguei a minha com ar de quem sabe o que faz. A minha irmã observava-me, atenta; ela sabia que eu era um ás a fazer aquilo e as minhas bochechas pareceram tomar fôlego. Os olhos dela pediam um balão bem grande. Os meus brilhavam de gozo. E, a seguir, aí vem ele, primeiramente algo tímido, mas depois ganhando vida e crescendo, e enchendo, e crescendo e enchendo, até estoirar com um baque seco e balofo, cobrindo-me metade da cara. O nariz não se me via.
A minha irmã fez o mesmo, mas o seu balão não cresceu tanto, pois nunca dominara a técnica e havia perdido a prática.
Foi assim que retomámos os deveres de casa, mastigando, saboreando e fazendo balões de pastilha elástica. Espalhara-se pelo quarto um aroma adocicado a bombons. Uma hora depois, ouvimos passos nas escadas e, com o coração aos pulos, colámos as pastilhas sob o tampo da mesa onde estudávamos. Deixámo-nos estar, fingindo empenho nas contas e na escrita.
A nossa madrasta entrou visivelmente enfurecida.
- Eu sei o que se passou aqui! Eu sei que se portaram mal! Eu já vos disse que sou uma mosca e entro e saio quando quero e vejo tudo, tudo, tudo o que fazem de bem e de mal! Que brincadeira foi essa na varanda? Respondam!
Ficámos calados e a tremer.
- Não respondem, mas eu sei muito bem o que andaram a fazer. Porque eu sou uma mosca e vejo tudo, tudo!
Aproximou-se de mim e agarrou-me pela nuca. Cheirou-me o hálito.
- Mentol! – vociferou ela. – Eu sabia!...
Um estalo deixou-me a face a arder. A cadeira tombou e eu fui atrás, rebolando para os pés da cama. Não tardou muito que a manápula da mulher voltasse a atacar, deixando-me as marcas dos dedos conforme ferros em brasa. De nada me valeu, a mim, proteger-me com os braços, porque a nossa madrasta era ágil qual insecto predador e atacante.
- Estiveram a comer pastilhas! Eu sei! Eu sei porque sou uma mosca e vejo tudo. E tu também levas!...
Agarrou a minha irmã pelo braço e desferiu-lhe violenta palmada no rabo.
- E agora quero os trabalhos feitos. Ai de vós quando eu voltar e ver tudo na mesma! Comigo não brincam, ouviram bem? Porque eu sei tudo. Porque eu sou uma mosca. UMA MOSCA!...
Trancou a porta e saiu. Não vertemos uma lágrima, nem sequer a minha pequena irmã. Eu ainda sentia as faces a escaldar. Dir-se-ia ter ali coladas as mãos da mulher. Devagar, aproximámo-nos da mesa. Tacteei por baixo, descolei a minha pastilha verde de mentol e meti-a na boca, lambendo o doce pegado nos dedos. A minha irmã hesitou.
- Eu bem quis tapar o buraco da fechadura – disse ela, recriminadora.
- Não sejas tola. Só as feiticeiras se podem transformar.
- E se ela é uma feiticeira?
- Que patetice! Quem te meteu essas coisas na cabeça?... É melhor acabares os deveres. Passa-me o teu livro e eu dito-te a cópia.
Assim despachávamo-nos mais depressa, disse-lhe eu. Mas, primeiro, a minha irmã meteu a mão debaixo da mesa e sacou a sua Gorila, amassada mas ainda com muito sabor a morango. Nenhum de nós ousou fazer balões, porém saboreávamos as pastilhas com muito deleite. A língua e os dentes trabalhavam aquela espécie de plasticina aromatizada e fazíamos com ela um rolo, depois uma minhoca, depois uma bola, e uma bolacha, e um véu para a língua, de novo um rolo, e depois uma escada, e uma armadura para os dentes de cima, depois uma armadura para os dentes de baixo, e novamente uma bola, até cansar os maxilares. Às vezes atrevíamo-nos a esticá-la qual fio de esparguete até dois palmos do nariz...
E eu, de livro aberto e dedos pegajosos, fui-lhe ditando a lição. Com todos os sentidos despertos, sabíamos que corríamos um grande risco pelo facto de não termos deitado fora as nossas Gorilas. Ela, de vez em quando, desviava a cara para a porta e fixava o olhar no buraco da fechadura. Qualquer ruído para lá daquela porta seria um sinal de perigo eminente. E eu lia-lhe pausadamente.
- Mas um dia... era com efeito... um lobo... que lhe entrara no curral... ponto e vírgula... e de nada lhe valeu... gritar... pelos seus companheiros... vírgula...
De repente, vindo como que do nada, surgiu um insecto no quarto. Era uma mosca. Sim, uma mosca.
Deixámos de mastigar e ficámos tão quietos que parecíamos estátuas. Estátuas de medo que se quebrariam ao menor toque. A mosca zumbiu e rodopiou em redor das nossas cabeças. Talvez procurasse algo, goma, açúcar, algo que lhe houvesse aguçado o apetite. A mosca deu mais duas voltas ao quarto e nós nem sequer pestanejámos. O zumbido era o único som que se ouvia ali. A atmosfera do quarto era doce. Por fim, veio pousar na mesa. Limpou as asas e avançou com determinação para um lado. Porém, mudou de ideias (se é que as moscas têm ideias) e avançou noutro sentido. Com um salto...zzzt... empoleirou-se no livro aberto que eu tinha entre mãos. Em pequenas correrias rápidas, parecia querer ler a lição que tinha como título, em letras do seu tamanho, NEM POR GRAÇA SE DEVE MENTIR. A mosca foi descendo, descendo o texto, como se saboreasse ali algo, porque havia de facto algo para saborear, ou como se soubesse mesmo ler...
O lobo fartou-se de matar ovelhas, e no fim matou também o pastor...
Fitei a minha irmã e a minha irmã fitou-me a mim. Apenas elevámos os olhares. Uma luz, uma faísca trespassou a mente de ambos.
O livro aberto entre as mãos...
Ela acenou, cúmplice, a cabeça devagar, tão devagar como um sopro. Um sim telepático.
E eu fechei o livro abruptamente!
Ouviu-se, ao mesmo tempo, um estalido de quitina crepitante.
.

11 comentários:

  1. Gostei de ler. E que fantástico final!

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  2. Merci, Analima.
    Conto baseado, na sua essência, numa história real.
    :)

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  3. Olá Paulo. Agora que a ShareMag mudou de formato, será que não estarias interessado em disponibilizar um dos teus ensaios para divulgar por lá o teu trabalho? Acho que tens o meu email, certo? Se não, podes encontrá-lo em sharemag.net, onde podes também ver a secção "ensaios" para ficar com uma ideia daquilo que pretendo de ti.

    Um abraço.

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  4. Gostei muito. Será que as Gorila compensaram os estalos? Espero que sim :)

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  5. Claro que compensaram!
    O que não se fazia por uma Pirata e depois , mais tarde , por uma bela duma Gorila!...
    :)

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  6. Antes de qualquer outra coisa,parabéns por esta composição também! Respondendo à sua questão, neste momento, encontro-me na ilha de São Miguel.
    Um abraço,

    Telmo Nunes

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  7. Brilhante! Cativou-me do princípio ao fim,sem conseguir parar. Quando tiver mais tempo, hei-de ler outras coisas suas.

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  8. Também gostei do "Alcaçuz, alcaçuz" e do "Corre miúdo corre". Linda frase: "Porque a alma humana é uma arca bem funda onde se guardam todas as ninharias." Algumas coisas não são ninharias, Paulo! Acreditamos que o sejam porque nos ensinaram a pensar assim. Pode doer muito perceber a importância de certas ninharias...
    Adoro a sua escrita: simples, mas tão directa, tão viva. Não gosto de estilos rebuscados, em que precisamos de meia hora para cada frase. É isso que me cativa na "Mosca": lê-se de um fôlego. E vemos tudo, como se estivéssemos naquele quarto, como... uma mosca? O Paulo acaba por transformar os leitores na mosca observadora.
    Mas nós somos a mosca boa, não a mosca-madrasta :)

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  9. Obrigado, Kássia!
    É bom ler comentários como os teus.
    Gostei da «mosca boa».
    :)

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