domingo, 31 de janeiro de 2010

O regresso

Entrando na sala de aula, senti novamente o cheiro a escola que havia deixado para trás duas semanas antes. O cheiro a escola era um cheiro difícil de definir. Era uma mistura de giz e tinta permanente, lápis de carvão e lápis de cores, papel de sebentas e papel de livros, cabedal e mata-borrão, colas e borrachas, batas limpas e batas sujas. Também a professora tinha entranhado em si o cheiro a escola. Não usava nenhum perfume, nem de rosas, nem de violetas, nada, nem um perfume barato como o da minha mãe. O seu perfume era o perfume a escola.
E lá estava o grande quadro de ardósia ao fundo da sala, como um espelho negro onde detestava rever os meus conhecimentos e a minha sabedoria, e por cima do quadro um crucifixo com Cristo esbranquiçado pelo pó de giz de muitos anos; ao lado, o mapa de Portugal, rectângulo à beira-mar plantado, cabeça da Europa, o Minho o cabelo, Lisboa o nariz, a boca – a grande boca –, e o Algarve o queixo. Nas paredes, também o hino nacional – A Portuguesa –, em letras gordas como numa escala optométrica no consultório dum oftalmologista, e dois retratos emoldurados que agora despertavam em mim especial interesse. Esses retratos estavam ali há alguns anos, mas era como se eu os visse pela primeira vez. Antes de me sentar na minha carteira, perto das grandes janelas, dei-lhe uma vista de olhos rápida.
No primeiro retrato (era uma cópia duma pintura) vi um homem sentado num cadeirão luxuoso, olhos pequenos, careca no coruto da cabeça, de vestimenta militar com botões grandes de metal – deviam ser bons de mais para jogar ao botão, pensei –, uma faixa ao peito na diagonal, uma cruz e outras medalhas também ao peito, estrelas nas mangas e franjinhas nos ombros. Tinha numa mão algo que me parecia um chapéu de plumas e na outra uma espada, com um globo ao lado. Parecia-me um imperador, ou um príncipe, um velhinho príncipe dum conto de fadas.
Eu não sabia que era o Presidente da República.
No outro retrato (que era uma cópia de fotografia) vi um homem a meio corpo de dentes à mostra a sorrir, finos como os dum tubarão, quase sem lábios, cabelo grisalho curtíssimo, fronte calva, fato escuro, gravata, camisa branca, uma mão no bolso, óculos de aros pretos. O sorriso dele era um sorriso meio torto.
Eu também não sabia que era o Presidente do Conselho de Ministros, o homem que, por assim dizer, mandava em Portugal e no Ultramar depois da morte de Salazar em fins de Julho de mil novecentos e setenta. Aliás, eu estava convencido de que um daqueles seria o Salazar de que o meu pai tanto falava. Mas não, não era, e eu não tinha culpa nenhuma de não perceber nada de política, se nem os adultos percebiam nada de política. Nada de nada, nada vezes nada. Eu só percebia de ninhos e de pássaros. Eu queria ser ornitólogo. Eu também queria ser aviador como Gago Coutinho e Sacadura Cabral. O que eu queria, mesmo, era voar. Aboar, conforme dizia a minha avó.

2 comentários:

  1. Claro que podes participar na Colectiva Paulo! Tanto quanto sei, estás de alguma forma ligado à Literatura, não? Podes participar com um conto, por exemplo. Ou um poema. Desde que respeite o formato que tinha apontado, tudo é possivel :) . Mas não levo nada a mal se achares que não deves participar, claro.

    Um abraço.

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  2. confissão:
    Quando era miúda, a forma de Portugal no mapa, mas virada na horizontal, assemelhava-se-me ao Adamastor. Eu virava a cabeça de lado e conseguia vê-lo sempre. Nao tenho a pequena ideia do porquê dessa relação que fazia. Mas lembro-me de, ainda por algum tempo achar que o monstro de que ouvira falar, o adamastor aparecia sempre camuflado quando davam a metereologia.

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