domingo, 1 de novembro de 2009

Redacção

A minha avó e eu


A minha avó tem sempre muito que fazer e ainda por cima é costureira. É na época das festas e nos casamentos que ela tem mais trabalho. Tem de acabar as roupas para o dia que lhe pedem e muitas vezes isso não acontece e as pessoas zangam-se com ela, mas acaba sempre tudo como deve ser. Ao pagarem, as pessoas acham um bocado caro, pois não calculam o trabalho despendido, os serões gastos a pedalar na sua Singer, tão velha quanto ela, e os materiais necessários para confeccionar um vestido ou um par de calças. Apesar de tudo, vem gente de muito longe encomendar-lhe roupa por medida e acham-na uma muito boa costureira. Vivemos aqui, nesta aldeia distante de tudo. Mas eu acho que é a melhor de Portugal. Eu acho mesmo que é a melhor do Mundo!

As mãos da minha avó são mágicas. Ela faz tudo com elas. De um pano de fazenda, traça uns riscos com giz ou com um pedaço seco de sabão azul, mede aqui e mede ali com a fita de costura, prega uns alfinetes nos sítios certos, alinhava em baixo e cose em cima e está um par de calças pronto na perfeição e o cliente com um sorriso nos lábios. Para um vestido complicado com muitos folhos e laços e lacinhos é a mesma coisa. À primeira prova bate tudo certo, quase nunca é preciso emendar seja o que for e as pessoas ficam contentes. Ela nunca fez um vestido de noiva, mas eu tenho a certeza que ela não teria problema nenhum em fazê-lo, assim com imensos folhos e imensas rendas e uma cauda muito comprida para arrastar pelo chão. Eu daria um braço – sim, daria um braço – em como uma princesa qualquer ficaria satisfeita se mandasse confeccionar à minha avó o seu vestido de gala. Neste caso, teria era de trazer os tecidos e as rendas e os tules e o tafetá e as pérolas do seu país, porque devem ser materiais caríssimos para uma princesa.

A minha avó é muito habilidosa e faz coisas espantosas com as mãos. Além dos vestidos lindíssimos, com folhos, sem folhos, com balões, sem balões, com laços, sem laços, de Primavera e de Verão, além das calças e dos calções, das batas e das blusas, das saias e dos casacos, é ela que também costuma fazer grande parte dos enfeites para as festas da nossa aldeia. Ela e a tesoura têm uma relação muito estreita, de profundo entendimento. A tesoura faz parte da mão direita da minha avó. Ela dobra várias vezes o papel colorido e faz fitas com recortes de estrelas e flores e inúmeras figuras geométricas de uma imaginação e um efeito surpreendentes. As pessoas que as colam com cola de farinha nos cordéis em ziguezague ao longo das ruas ficam de boca aberta. E os balões? Os balões ficam tão bonitos como cachos de glicínias. Aqueles rendilhados entrecruzados de várias cores são de um capricho e um fascínio que baralham a cabeça de qualquer pessoa e ficamos a pensar: como é que isto se faz? Como é que alguém consegue fazer uma coisa assim? Às vezes penso que é uma pena ver aqueles balões deslumbrantes estragarem-se pendurados ao vento ou à chuva, porque são verdadeiras obras de arte que duram poucos dias.

É: as mãos da minha avó são mágicas, fazem maravilhas. Ela e a tesoura fazem milagres e a tesoura tem tanto uso que às vezes, em vez de cortar, mastiga. É aí que entra o amolador de tesouras, que de quando em quando passa pela nossa aldeia. Vagaroso, vem na sua bicicleta, uma pasteleira ferrugenta com a caixa das mós atrás, e não amola só tesouras e facas, também conserta chapéus de chuva e põe gatos nos alguidares de barro rachados. Vai tocando a sua flauta de Pã pelas ruas, para chamar a atenção do povo. O capador de porcos também tem uma, mas não combina nada com o seu tipo de ofício: uma vez vi-o capar um porco e logo a seguir comer os testículos do pobre animal assados com sal e vinagre nas brasas. E o porco a ver, coitado!... O amola tesouras é mais romântico, apesar de me parecer tão velho quanto a minha avó. O som da sua flauta de Pã é muito singular, parece que ondula para a frente e depois regressa ao ponto de partida e fica no ouvido como uma melodia do paraíso. Eu vou logo a correr e mando-o parar, depois trago-lhe a tesoura da minha avó, que já não corta, mas mastiga. O amolador já me conhece desde miúdo e faz-me brincadeiras do género: orelha, telha ou puxelha? E eu baralho-me sempre e digo telha ou digo puxelha e ele puxa-me as orelhas para cima ou para a frente, respectivamente. Ou outra assim: de quem é esta cara? Ele aponta para perto do meu nariz, eu devo responder que é dele, mas também me engano sempre e respondo que é minha e então ele puxa-me o nariz, dizendo: se é tua, para que serve este marco?...

O amola tesouras é muito divertido e muito simpático e até me trata por Paulito. Então, Paulito, já tens muitos ninhos? Ele sabe que eu gosto de pássaros e de ninhos. Olha, ontem vi um pica-pau, e tu, já viste um pica-pau? Coisas assim. Ele diz que já viu um cuco e eu não acredito – não acredito!... Então põe as mós a desandar e as lâminas da tesoura até fazem faíscas miudinhas. Um cuco?... Depois experimenta a tesoura num papel e depois experimenta a tesoura num pano, e diz: perfeita, como nova. E dou-lhe vinte escudos. Um cuco? Não acredito, era mais fácil ver aqui uma gaivota e estamos tão longe do mar. E ele: Nunca percas a esperança, Paulito, nunca percas a esperança. Porque um cuco e uma gaivota o que têm em comum são as asas e as asas levam-nos longe. Dá-me um apertão nas bochechas e vai-se embora a sorrir, empurrando a bicicleta ferrugenta, vagarosamente, e fazendo-se ouvir pela flauta de Pã. O som vai e vem, sobe e desce, parece que ondula.

Volto com a tesoura afiada e a minha avó nem precisa de a experimentar porque sabe que o amolador é de confiança. Ela fica contente porque uma costureira com uma tesoura que mastiga o pano é uma má costureira e ela e a tesoura afiada fazem maravilhas. Apenas ao domingo deixa a tesoura e a Singer em paz. Ao domingo vai à missa, comigo, e comparo-a a um corvo porque se veste toda de preto. Sapatos pretos. Meias pretas. Saia preta. Blusa preta. Camisola preta. Carteira preta. Lenço preto – a cobrir-lhe o cabelo preto... perdão... branco.

A minha avó é a número um do universo. Na página 80 do meu livro de leitura – olhem, precisamente a idade da minha avó – há uma lição que se chama «Tu és linda, minha avó!» e conta a história de uma avó que queimou as mãos para salvar o neto que dormia no berço. Ela não queria que o neto as visse, tão deformadas e cheias de cicatrizes estavam, mas o pequeno acaba por lhe dizer assim: «As tuas mãos são as mais belas do mundo!» As mãos da minha avó não têm queimaduras nem deformações, apenas a pele engelhada, e frieiras e calos da tesoura e picadelas de agulha quando se esquece de utilizar o dedal. Mas também as dela são as mais belas do mundo. São mesmo as mais belas do mundo!

Os meus pais morreram, foi a minha avó quem me criou. E não me posso queixar. A minha avó contou-me que, quando era nova, dividiam uma sardinha salgada para três, quando as havia, e que chegara a comer geros, beldroegas, folhas de papoila, labaças, cardos, grelos de saramago e outras ervas do campo. Também comias urtigas, vó?... Tamém. Quase não queria acreditar. Por isso, não – não me posso queixar. Tenho-a a ela e ela tem-me a mim. À minha avó só lhe falta uma coisa: um sorriso no rosto.

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7 comentários:

  1. Boa noite, Paulo! Já tinha passado aqui mas agora quero dizer que gostei desta redacção e de outras que li. A música também me agrada. Bem, acho que se seguir o blogue só tenho a ganhar. Obrigada por passar pelos "dias imperfeitos".

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  2. Paulo
    Uma delícia de redacção. Gostaria muito de saber quando a escreveu...
    Sabe, no meu livro de leitura, as mãos estragadas eram da mãe, talvez não seja o mesmo livro, ou talvez cada um de nós se lembre do que lhe ficou na alma.
    Adorei.
    Um abraço

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  3. Analima: obrigado também pela visita. Quanto à música, estou com azar. Já retiraram do youtube algumas das que escolhi. No problem!

    Benjamina: esta é uma redacção de adulto, com memórias de infância. E tem razão, talvez seja mesmo o mesmo livro: as mãos eram realmente as da mãe. Fiz aqui um pouco de batota, a partir do texto de António Botto. Mas é uma longa história para contar assim de repente.
    Obrigado pela atenção!

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  4. «Longa história»... a da batota, claro.
    E a página era a 17 e não a 80.
    :)

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  5. Paulo
    Eu iria dizer, que se fosse de uma criança, era demasiado bem escrita, só dum prodígio. Sendo de um adulto, o prodígio está sobretudo na forma como consegue transmitir a emoção de uma criança. Baralhou-me.
    Quanto à batota, acho que já tinha percebido. É que essa história nunca me esqueceu, porque a minha mãe também queimou as mãos pelo mesmo motivo, quando eu estava no berço, mas felizmente não ficou com cicatrizes. Não me poderia baralhar nessa parte. A página é irrelevante, e também não tenho o livro ;)
    Um abraço

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  6. De certo modo não a baralhei. Porque não me é difícil pôr-me na pele de uma criança; ou melhor, eu tenho essa criança (ainda) dentro de mim; ou melhor ainda, eu sou uma eterna criança. Quando for grande, quero ser criança - este poderia ser o meu lema.

    Quanto à história do Botto, claro que não poderia esquecê-la. Viveu-a.
    (Digo-lhe que hoje em dia é fácil de conseguir esses livros da primária, visto terem feito reedições. Também já os vi em feiras de antiguidades, aqui na Batalha e em Alcobaça)
    :)

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  7. Escrita de fino recorte, elegante e com emoções à flor da pele.
    Gostei e muito!

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