domingo, 6 de junho de 2010

domingo, 4 de abril de 2010

A mosca


- A tua irmã?
A nossa madrasta irrompera furiosa pelo quarto adentro. Como uma tempestade. Ou como um insecto perigoso, uma vespa assanhada. E eu, sentado a estudar números inteiros e fraccionais, limitei-me a um gesto silencioso com o queixo. A mulher foi direita ao guarda-roupa, abriu-o e, com brutalidade, puxou a miúda por uma orelha.
- Foi sem querer! – exclamou a minha irmãzita.
A primeira palmada quase não a sentiu, tenho a certeza disso, mas a segunda queimou-lhe a carne das nádegas que tremiam como gelatina. Nas mãos da mulher, a minha irmã como que rodopiava conforme uma boneca de trapos.
Eu fingia que estudava. A mãe da Ana foi às compras com uma nota de cinquenta escudos; gastou dois quintos do dinheiro numa prenda para a Ana e com o restante comprou um quilograma de bacalhau...
- Aprende a não mexer onde não deves! – berrou a irascível mulher.
...Quanto custou a prenda da Ana?
Uma terceira e uma quarta palmada deram fim ao castigo.
- Agora quero os trabalhos de casa feitos. Os dois! Sem erros, sem brigas, sem nada. Ai de vós quando eu chegar!
A mulher saiu do quarto, mas, assim que saiu, voltou a entrar e disse, sempre a agitar um dedo ameaçador no ar:
- Se pensam que me vou embora e fazem o que querem, estão muito enganados. Porque eu vos digo já: posso transformar-me em mosca, passar pela fechadura e ver o que estão a fazer. Por isso, cautela, muita cautela!
Saiu e fechou a porta. Ouviu-se a chave a desandar, depois os passos dela a afastarem-se, descendo as escadas, e o estrondo da porta do átrio.
A minha irmã estava sentada na cama com as mãos entre os joelhos e eu ousei olhar para ela. Tinha dois riscos de lágrimas nas faces e lambia o ranho que gotejava do nariz. Fungava intermitentemente.
- Vai buscar um lenço – disse eu.
Ela fungou, à guisa de resposta, lançou a língua ao lábio superior repleto de mucosidades nasais e deixou-se ficar quieta.
- Eu bem te disse para não mexeres no frasco do mel...
- Foi sem querer. Escorregou-me.
- Ela quer lá saber disso!
- Detesto a nossa madrasta!
- É a nossa segunda mãe – respondi-lhe, para a reconfortar.
- Não, não e não! É uma pessoa ruim. Detesto-a!
E fungou, cruzando os braços. Eu também a detestava. Tinha saudades da nossa verdadeira mãe e culpava o nosso pai por se ter juntado com aquela mulher. Estava sempre a ralhar connosco e fazia-nos a vida negra com tanta regra e tanta exigência. Agora tinha os trabalhos de casa para fazer e, para além disso, fazê-los impecavelmente. E ajudar a minha irmã nas cópias e nos ditados, a letra bem feita e sem erros, nem borrões de tinta permanente. Por isso, era melhor meter mãos à obra.
Algum tempo depois, deixámos os deveres e fomos à varanda. Ouvimos a algazarra e os gritos de alegria dos miúdos que brincavam no pátio do condomínio. Tratava-se de um conjunto de edifícios velhos em forma de quadrado com uma entrada em arco que dava para a rua principal da vila. Havia estendais de roupa branca e desbotada por todas as varandas, ou só com molas ou sacos de plástico, manjericos e sardinheiras, outras plantas que caíam como cascatas verdes, canários e bicos-de-lacre engaiolados, gatos dorminhocos e cães a ladrar, homens fumando e ouvindo relatos de futebol na telefonia e velhos a cuspir o catarro para a calçada do pátio.
Olhámos para baixo e vimos os nossos amigos a correr atrás duma bola, eles, elas a saltar à corda. Suspirámos fundo. Sábado, e nós ali fechados... Desejávamos tanto estar lá em baixo!
- Então? – gritaram alguns assim que nos viram debruçados na varanda.
- Não podemos.
- Vá lá!
- Estamos de castigo.
- Temos pastilhas elásticas – disse alguém. – Morango e mentol.
Eu e a minha irmã fitámo-nos um ao outro e engolimos em seco a grande novidade. Há quanto tempo não comíamos uma pastilha?... A nossa madrasta era muito rígida em tudo. No pentear, no lavar, no vestir, no sujar, no comer... As guloseimas estavam fora de questão e sobretudo as pastilhas elásticas, que estavam proibidas naquela casa. Tal severidade deixava-nos terrivelmente angustiados. Homessa! Que mal tinha uma pastilha elástica?...
- Esperem! – exclamei por fim.
Voltei ao quarto e despejei um pequeno cesto de vime cheio de soldadinhos de chumbo, ficando espalhados no chão como despojos de terrível batalha. Duma gaveta retirei um rolo de fio e atei a ponta à asa do cesto. A minha irmã percebeu logo a ideia. E teve uma outra: fez uma bola de papel e enfiou-a no buraco da fechadura. Era uma ideia bizarra.
- Para que é isso? – perguntei-lhe, surpreso.
- Ora! E se ela se transforma em mosca?
- Acreditaste nisso? És mesmo pateta. Tira o papel daí. Ainda estragas a fechadura e ficamos aqui fechados para sempre, e então é que teremos problemas a sério. Pateta!
Contrariada, a minha irmã retirou a bola de papel e fomos os dois para a varanda. Em baixo, no pátio, a miudagem esperava-nos de nariz erguido para o céu. Olhei em redor, cauteloso, para todas as varandas e fiz descer o pequeno cesto meticulosamente. Estávamos num terceiro andar. A garotada, em baixo, bateu palmas e pulou de alegria.
- Uma de cada! – pedi eu, mas como quem segreda ao ouvido.
Quando o cesto chegou ao seu destino, a miudagem formou um círculo em redor com muito alarido e o dono das pastilhas depositou no seu fundo uma de mentol e uma de morango. E, depois, aí vai o cesto para cima, muito cautelosamente para não empeçar nos estendais de algumas varandas. Uma vizinha de baixo, uma mulher gorda e muito anafada, que estendia roupa de molas presas aos dentes, viu o cesto passar-lhe por perto e paralisou os gestos por alguns instantes, como se tivesse visto uma coisa do outro mundo. Viu que éramos nós, do andar de cima.
Com as guloseimas chegadas a bom porto, eu e a minha irmã ficámos radiantes. Fiz um gesto de ok com o polegar para os amigos em baixo, que retomaram as correrias e os jogos de bola. Ah!... E ali estavam as pastilhas elásticas, cujo nome não posso dizer - porque aqui não se fazem anúncios - mas que começava com g e acabava com a, tendo pelo meio um r e um i, e como logótipo a cara de um animal da selva... (Pronto, creio que toda a gente já adivinhou e o melhor mesmo é dizer logo de uma vez: pastilhas elásticas Gorila...) Mãezinha! Quantas pastilhas Gorila com sabor a banana, morango e mentol não comemos nós! Quantos balões não nos rebentaram colados ao nariz! Quantos trocos não surripiámos à carteira da mãe! Quantas dores de barriga não nos fizeram correr para a retrete!... Mas que importava isso? Sim, que importava isso se as saudades eram tantas?
Eu meti a Gorila de mentol na boca e a minha irmã a Gorila de morango. Que êxtase para ambos! Há quanto tempo!... Mastiguei a minha com ar de quem sabe o que faz. A minha irmã observava-me, atenta; ela sabia que eu era um ás a fazer aquilo e as minhas bochechas pareceram tomar fôlego. Os olhos dela pediam um balão bem grande. Os meus brilhavam de gozo. E, a seguir, aí vem ele, primeiramente algo tímido, mas depois ganhando vida e crescendo, e enchendo, e crescendo e enchendo, até estoirar com um baque seco e balofo, cobrindo-me metade da cara. O nariz não se me via.
A minha irmã fez o mesmo, mas o seu balão não cresceu tanto, pois nunca dominara a técnica e havia perdido a prática.
Foi assim que retomámos os deveres de casa, mastigando, saboreando e fazendo balões de pastilha elástica. Espalhara-se pelo quarto um aroma adocicado a bombons. Uma hora depois, ouvimos passos nas escadas e, com o coração aos pulos, colámos as pastilhas sob o tampo da mesa onde estudávamos. Deixámo-nos estar, fingindo empenho nas contas e na escrita.
A nossa madrasta entrou visivelmente enfurecida.
- Eu sei o que se passou aqui! Eu sei que se portaram mal! Eu já vos disse que sou uma mosca e entro e saio quando quero e vejo tudo, tudo, tudo o que fazem de bem e de mal! Que brincadeira foi essa na varanda? Respondam!
Ficámos calados e a tremer.
- Não respondem, mas eu sei muito bem o que andaram a fazer. Porque eu sou uma mosca e vejo tudo, tudo!
Aproximou-se de mim e agarrou-me pela nuca. Cheirou-me o hálito.
- Mentol! – vociferou ela. – Eu sabia!...
Um estalo deixou-me a face a arder. A cadeira tombou e eu fui atrás, rebolando para os pés da cama. Não tardou muito que a manápula da mulher voltasse a atacar, deixando-me as marcas dos dedos conforme ferros em brasa. De nada me valeu, a mim, proteger-me com os braços, porque a nossa madrasta era ágil qual insecto predador e atacante.
- Estiveram a comer pastilhas! Eu sei! Eu sei porque sou uma mosca e vejo tudo. E tu também levas!...
Agarrou a minha irmã pelo braço e desferiu-lhe violenta palmada no rabo.
- E agora quero os trabalhos feitos. Ai de vós quando eu voltar e ver tudo na mesma! Comigo não brincam, ouviram bem? Porque eu sei tudo. Porque eu sou uma mosca. UMA MOSCA!...
Trancou a porta e saiu. Não vertemos uma lágrima, nem sequer a minha pequena irmã. Eu ainda sentia as faces a escaldar. Dir-se-ia ter ali coladas as mãos da mulher. Devagar, aproximámo-nos da mesa. Tacteei por baixo, descolei a minha pastilha verde de mentol e meti-a na boca, lambendo o doce pegado nos dedos. A minha irmã hesitou.
- Eu bem quis tapar o buraco da fechadura – disse ela, recriminadora.
- Não sejas tola. Só as feiticeiras se podem transformar.
- E se ela é uma feiticeira?
- Que patetice! Quem te meteu essas coisas na cabeça?... É melhor acabares os deveres. Passa-me o teu livro e eu dito-te a cópia.
Assim despachávamo-nos mais depressa, disse-lhe eu. Mas, primeiro, a minha irmã meteu a mão debaixo da mesa e sacou a sua Gorila, amassada mas ainda com muito sabor a morango. Nenhum de nós ousou fazer balões, porém saboreávamos as pastilhas com muito deleite. A língua e os dentes trabalhavam aquela espécie de plasticina aromatizada e fazíamos com ela um rolo, depois uma minhoca, depois uma bola, e uma bolacha, e um véu para a língua, de novo um rolo, e depois uma escada, e uma armadura para os dentes de cima, depois uma armadura para os dentes de baixo, e novamente uma bola, até cansar os maxilares. Às vezes atrevíamo-nos a esticá-la qual fio de esparguete até dois palmos do nariz...
E eu, de livro aberto e dedos pegajosos, fui-lhe ditando a lição. Com todos os sentidos despertos, sabíamos que corríamos um grande risco pelo facto de não termos deitado fora as nossas Gorilas. Ela, de vez em quando, desviava a cara para a porta e fixava o olhar no buraco da fechadura. Qualquer ruído para lá daquela porta seria um sinal de perigo eminente. E eu lia-lhe pausadamente.
- Mas um dia... era com efeito... um lobo... que lhe entrara no curral... ponto e vírgula... e de nada lhe valeu... gritar... pelos seus companheiros... vírgula...
De repente, vindo como que do nada, surgiu um insecto no quarto. Era uma mosca. Sim, uma mosca.
Deixámos de mastigar e ficámos tão quietos que parecíamos estátuas. Estátuas de medo que se quebrariam ao menor toque. A mosca zumbiu e rodopiou em redor das nossas cabeças. Talvez procurasse algo, goma, açúcar, algo que lhe houvesse aguçado o apetite. A mosca deu mais duas voltas ao quarto e nós nem sequer pestanejámos. O zumbido era o único som que se ouvia ali. A atmosfera do quarto era doce. Por fim, veio pousar na mesa. Limpou as asas e avançou com determinação para um lado. Porém, mudou de ideias (se é que as moscas têm ideias) e avançou noutro sentido. Com um salto...zzzt... empoleirou-se no livro aberto que eu tinha entre mãos. Em pequenas correrias rápidas, parecia querer ler a lição que tinha como título, em letras do seu tamanho, NEM POR GRAÇA SE DEVE MENTIR. A mosca foi descendo, descendo o texto, como se saboreasse ali algo, porque havia de facto algo para saborear, ou como se soubesse mesmo ler...
O lobo fartou-se de matar ovelhas, e no fim matou também o pastor...
Fitei a minha irmã e a minha irmã fitou-me a mim. Apenas elevámos os olhares. Uma luz, uma faísca trespassou a mente de ambos.
O livro aberto entre as mãos...
Ela acenou, cúmplice, a cabeça devagar, tão devagar como um sopro. Um sim telepático.
E eu fechei o livro abruptamente!
Ouviu-se, ao mesmo tempo, um estalido de quitina crepitante.
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domingo, 14 de fevereiro de 2010

domingo, 31 de janeiro de 2010

O regresso

Entrando na sala de aula, senti novamente o cheiro a escola que havia deixado para trás duas semanas antes. O cheiro a escola era um cheiro difícil de definir. Era uma mistura de giz e tinta permanente, lápis de carvão e lápis de cores, papel de sebentas e papel de livros, cabedal e mata-borrão, colas e borrachas, batas limpas e batas sujas. Também a professora tinha entranhado em si o cheiro a escola. Não usava nenhum perfume, nem de rosas, nem de violetas, nada, nem um perfume barato como o da minha mãe. O seu perfume era o perfume a escola.
E lá estava o grande quadro de ardósia ao fundo da sala, como um espelho negro onde detestava rever os meus conhecimentos e a minha sabedoria, e por cima do quadro um crucifixo com Cristo esbranquiçado pelo pó de giz de muitos anos; ao lado, o mapa de Portugal, rectângulo à beira-mar plantado, cabeça da Europa, o Minho o cabelo, Lisboa o nariz, a boca – a grande boca –, e o Algarve o queixo. Nas paredes, também o hino nacional – A Portuguesa –, em letras gordas como numa escala optométrica no consultório dum oftalmologista, e dois retratos emoldurados que agora despertavam em mim especial interesse. Esses retratos estavam ali há alguns anos, mas era como se eu os visse pela primeira vez. Antes de me sentar na minha carteira, perto das grandes janelas, dei-lhe uma vista de olhos rápida.
No primeiro retrato (era uma cópia duma pintura) vi um homem sentado num cadeirão luxuoso, olhos pequenos, careca no coruto da cabeça, de vestimenta militar com botões grandes de metal – deviam ser bons de mais para jogar ao botão, pensei –, uma faixa ao peito na diagonal, uma cruz e outras medalhas também ao peito, estrelas nas mangas e franjinhas nos ombros. Tinha numa mão algo que me parecia um chapéu de plumas e na outra uma espada, com um globo ao lado. Parecia-me um imperador, ou um príncipe, um velhinho príncipe dum conto de fadas.
Eu não sabia que era o Presidente da República.
No outro retrato (que era uma cópia de fotografia) vi um homem a meio corpo de dentes à mostra a sorrir, finos como os dum tubarão, quase sem lábios, cabelo grisalho curtíssimo, fronte calva, fato escuro, gravata, camisa branca, uma mão no bolso, óculos de aros pretos. O sorriso dele era um sorriso meio torto.
Eu também não sabia que era o Presidente do Conselho de Ministros, o homem que, por assim dizer, mandava em Portugal e no Ultramar depois da morte de Salazar em fins de Julho de mil novecentos e setenta. Aliás, eu estava convencido de que um daqueles seria o Salazar de que o meu pai tanto falava. Mas não, não era, e eu não tinha culpa nenhuma de não perceber nada de política, se nem os adultos percebiam nada de política. Nada de nada, nada vezes nada. Eu só percebia de ninhos e de pássaros. Eu queria ser ornitólogo. Eu também queria ser aviador como Gago Coutinho e Sacadura Cabral. O que eu queria, mesmo, era voar. Aboar, conforme dizia a minha avó.

sábado, 19 de dezembro de 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009




Por favor, parem o Universo.
(Quero apear-me)


Sou nada. Sou pó.
Eu sei que sou pó, uma partícula de pó na imensidão infindável que se julga ser o Universo. Ergo os olhos e contemplo uma ínfima parte dele e este meu pedido – por favor, parem o Universo – parece-me ridículo, e direi até idiota. Mas, indo bem ao âmago das coisas, será que é ridículo, será que é assim tão idiota? Uma partícula de pó e mais uma e mais uma, e ainda outra e outra e outra… juntando-se formarão um grão de areia. Uma mão-cheia de grãos de areia formarão uma pequena pedra, e um punhado de pedras juntas comporão um rochedo. Vistas bem as coisas, não é a Terra um conjunto de rochedos que gira em torno de si próprio? Não é a Terra o terceiro rochedo a contar do Sol? Não é a Terra, também ela, um universo de grãos, de partículas de pó?
Eu sei que sou pó, uma partícula de pó, e faço parte da Terra e, fazendo parte dela, faço também parte do Universo. Não, não é assim tão ridículo, não é assim tão idiota. Estou agora convencido que faz todo o sentido reflectir por um instante e bradar com todo o alento do peito: por favor, parem o Universo!
Embarcámos numa viagem alucinante. Para onde vamos? Viajamos numa locomotiva sem destino. Para consolidar a minha ideia não preciso regressar muito no tempo. A minha memória está tão fresca ainda. O meu corpo sente a dor ainda tão acutilante debaixo da pele. As minhas mãos não conseguem repelir o medo que se estampa no rosto. Os meus olhos nada mais reflectem que o pavor do amanhã.
Vou então regressar no tempo.
Naquele fatídico seis de Agosto de mil novecentos e quarenta e cinco, a primeira bomba atómica caía sobre a cidade de Hiroshima. O cogumelo mortífero aniquilou milhares de pessoas e animais, arrasando edifícios e ruas, reduzindo a cidade a escombros e pó. Nada mais do que pó. Só me recordo de olhar, muito de longe, a gigante bola de fogo e cegar instantaneamente. Não sei se morri. Provavelmente…
Lembram-se daquela fotografia onde um grupo de miúdos de todas as idades e de olhares apagados esperava por um comboio sinistro? Aquele de calções e boné e um casaco com uma estrela de David estampada era eu. Eu tinha um ar traquina, não tinha? Mas não íamos para a escola, nem para nenhuma festa, nem para nenhum espectáculo de circo. Não sabíamos sequer para onde íamos. Na verdade, fomos para Auschwitz, fazendo uma terrível viagem num vagão de carga durante inúmeros dias, e quando lá chegámos mandaram-nos logo para um estranho pavilhão com cheiro a gás. Como bem me lembro desse odor! Éramos tantas, tantas crianças! Éramos um recreio de crianças! E os idosos e as pessoas doentes fizeram-nos companhia, instigados pelas baionetas ameaçadoras dos soldados. A partir daqui não me lembro de mais nada…
Agora mostro-vos outra fotografia. Esta menina nua, correndo aterrorizada de braços abertos pela estrada fora, também sou eu. Naquele momento só queria a minha mãe, o meu pai… Eu era vietnamita e tinham acabado de cair algumas toneladas de bombas perto da minha aldeia. Os homens de metralhadora vinham atrás e nós, crianças, corríamos como num pesadelo confuso. Nunca percebi por que estava ali, a chorar e a correr, nua, naquele dia tão gelado e triste.
E agora levo-os até África, para um daqueles campos de refugiados onde homens, mulheres e crianças se amontoam como exércitos de esqueletos humanos. Esqueletos inverosímeis que andam, abrem e fecham os olhos tristes e estendem as gamelas vazias. Esse rapaz de ventre inchado, e cujos ossos salientes se podem contar um a um, sou eu. Não sonho com brinquedos; nunca soube o que era isso. Os meus sonhos estão povoados de abutres que me perseguem pacientemente. Não são sonhos: são pesadelos.
Em Angola pisei uma mina. Vinha da escola e saí do caminho habitual. Depois de tantos anos de guerra e sofrimento, olhem o que me havia de calhar. Agora uso uma muleta, aqui não há dinheiro para próteses ou sei lá como chamam a essas pernas artificiais. Aquilo que eu mais gostava de fazer – jogar à bola – ficou enterrado para sempre na minha infância.
Numa esplanada de Jerusalém, eu e a minha mãe bebíamos limonada e ríamos já nem me lembro de quê. De repente, um autocarro desnorteado abalroa automóveis e pessoas e vem direito a nós como um animal cego e feroz, conduzido por um louco suicida. Explodiu. E espalhou corpos e sangue por todos os cantos. O meu. O da minha mãe. O nosso corpo. O nosso sangue.
No dia seguinte, os chefes do meu país mandaram atacar o outro lado. Ainda não existia esse muro. Imensas casas foram destruídas por bombardeamentos e pelos bulldozers. Aquela criança empoeirada e hirta e defunta que passa de mão em mão, qual bandeira destroçada, sobre as cabeças duma multidão de palestinianos furiosos era eu. Incompreensivelmente, era eu tanto do lado de cá como do lado de lá. Que tipo de cegueira orienta os homens? Será o ódio aquilo que lhes acende a alma? Não haverá mais nada nos seus corações?
Nos arredores de Sarajevo fuzilaram a minha família. Vi tudo pela janela do velho palheiro. Nem o Mik escapou. O Mik era o meu cão. O Mik era o meu melhor amigo. Até a minha bicicleta foi esmagada por um carro blindado. Foi um dia muito triste na minha vida.
E eu nem queria falar do Iraque. O Iraque é agora um país de viúvas e órfãos. Não há hospitais, não há escolas, não há nada. Há ruínas, há fome, há sangue todos os dias. Devem estar lembrados daquele miúdo sem pernas nem braços, envolto de ligaduras como uma múmia viva, que passou nos noticiários da noite. Aquele miúdo era eu. Sim, também. Pois eu vos digo: se existe inferno, o Iraque é o inferno.
Podia falar-vos de outros horrores. Dos meninos soldados. Podia falar-vos do Afeganistão. Podia falar-vos do onze de Setembro e das Torres Gémeas, mas não posso nem quero. Também lá estava. Na verdade, sinto que estou a ser demasiado cruel, trazendo-vos à memória o que não devia ser memorável.
Podia ainda falar-vos dos petroleiros e das marés negras, dos massacres de baleias, das florestas tropicais, dos índios escorraçados, dos que não têm terra, do efeito de estufa e do aquecimento global… mas quero deter-me. Sou nada, sou pó, porém quero reiterar o meu pedido: talvez ainda seja possível dar-lhe um outro rumo: Por favor, parem o Universo. Parem as estrelas, as luas, os planetas. A Terra. Para onde vamos? Parem esse comboio. Quero apear-me desta viagem.
Vou dizer-vos um segredo. Parece infantil, mas não é. O que quero mesmo é regressar ao colo da minha mãe. Não. O que quero mesmo é regressar ao ventre da minha mãe. Quero estar nesse quentinho líquido amniótico que nos embala docemente. Podem não acreditar, mas recordo como era estar nessa suspensão de felicidade. Era como fazia quando criança: fechava os olhos com o rosto na direcção do sol e sentia o calor nas pálpebras e tudo em volta era um espelho de tons alaranjados. Tal qual como estou a fazer agora, fechei os olhos para regressar à minha mãe. Estou nesse quentinho líquido de todos os sonhos e de todas as esperanças. Estou bem aqui. Sim, estou tão bem aqui!
Por favor, parem o Universo.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009



Esta é para António Sérgio!
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domingo, 1 de novembro de 2009

Redacção

A minha avó e eu


A minha avó tem sempre muito que fazer e ainda por cima é costureira. É na época das festas e nos casamentos que ela tem mais trabalho. Tem de acabar as roupas para o dia que lhe pedem e muitas vezes isso não acontece e as pessoas zangam-se com ela, mas acaba sempre tudo como deve ser. Ao pagarem, as pessoas acham um bocado caro, pois não calculam o trabalho despendido, os serões gastos a pedalar na sua Singer, tão velha quanto ela, e os materiais necessários para confeccionar um vestido ou um par de calças. Apesar de tudo, vem gente de muito longe encomendar-lhe roupa por medida e acham-na uma muito boa costureira. Vivemos aqui, nesta aldeia distante de tudo. Mas eu acho que é a melhor de Portugal. Eu acho mesmo que é a melhor do Mundo!

As mãos da minha avó são mágicas. Ela faz tudo com elas. De um pano de fazenda, traça uns riscos com giz ou com um pedaço seco de sabão azul, mede aqui e mede ali com a fita de costura, prega uns alfinetes nos sítios certos, alinhava em baixo e cose em cima e está um par de calças pronto na perfeição e o cliente com um sorriso nos lábios. Para um vestido complicado com muitos folhos e laços e lacinhos é a mesma coisa. À primeira prova bate tudo certo, quase nunca é preciso emendar seja o que for e as pessoas ficam contentes. Ela nunca fez um vestido de noiva, mas eu tenho a certeza que ela não teria problema nenhum em fazê-lo, assim com imensos folhos e imensas rendas e uma cauda muito comprida para arrastar pelo chão. Eu daria um braço – sim, daria um braço – em como uma princesa qualquer ficaria satisfeita se mandasse confeccionar à minha avó o seu vestido de gala. Neste caso, teria era de trazer os tecidos e as rendas e os tules e o tafetá e as pérolas do seu país, porque devem ser materiais caríssimos para uma princesa.

A minha avó é muito habilidosa e faz coisas espantosas com as mãos. Além dos vestidos lindíssimos, com folhos, sem folhos, com balões, sem balões, com laços, sem laços, de Primavera e de Verão, além das calças e dos calções, das batas e das blusas, das saias e dos casacos, é ela que também costuma fazer grande parte dos enfeites para as festas da nossa aldeia. Ela e a tesoura têm uma relação muito estreita, de profundo entendimento. A tesoura faz parte da mão direita da minha avó. Ela dobra várias vezes o papel colorido e faz fitas com recortes de estrelas e flores e inúmeras figuras geométricas de uma imaginação e um efeito surpreendentes. As pessoas que as colam com cola de farinha nos cordéis em ziguezague ao longo das ruas ficam de boca aberta. E os balões? Os balões ficam tão bonitos como cachos de glicínias. Aqueles rendilhados entrecruzados de várias cores são de um capricho e um fascínio que baralham a cabeça de qualquer pessoa e ficamos a pensar: como é que isto se faz? Como é que alguém consegue fazer uma coisa assim? Às vezes penso que é uma pena ver aqueles balões deslumbrantes estragarem-se pendurados ao vento ou à chuva, porque são verdadeiras obras de arte que duram poucos dias.

É: as mãos da minha avó são mágicas, fazem maravilhas. Ela e a tesoura fazem milagres e a tesoura tem tanto uso que às vezes, em vez de cortar, mastiga. É aí que entra o amolador de tesouras, que de quando em quando passa pela nossa aldeia. Vagaroso, vem na sua bicicleta, uma pasteleira ferrugenta com a caixa das mós atrás, e não amola só tesouras e facas, também conserta chapéus de chuva e põe gatos nos alguidares de barro rachados. Vai tocando a sua flauta de Pã pelas ruas, para chamar a atenção do povo. O capador de porcos também tem uma, mas não combina nada com o seu tipo de ofício: uma vez vi-o capar um porco e logo a seguir comer os testículos do pobre animal assados com sal e vinagre nas brasas. E o porco a ver, coitado!... O amola tesouras é mais romântico, apesar de me parecer tão velho quanto a minha avó. O som da sua flauta de Pã é muito singular, parece que ondula para a frente e depois regressa ao ponto de partida e fica no ouvido como uma melodia do paraíso. Eu vou logo a correr e mando-o parar, depois trago-lhe a tesoura da minha avó, que já não corta, mas mastiga. O amolador já me conhece desde miúdo e faz-me brincadeiras do género: orelha, telha ou puxelha? E eu baralho-me sempre e digo telha ou digo puxelha e ele puxa-me as orelhas para cima ou para a frente, respectivamente. Ou outra assim: de quem é esta cara? Ele aponta para perto do meu nariz, eu devo responder que é dele, mas também me engano sempre e respondo que é minha e então ele puxa-me o nariz, dizendo: se é tua, para que serve este marco?...

O amola tesouras é muito divertido e muito simpático e até me trata por Paulito. Então, Paulito, já tens muitos ninhos? Ele sabe que eu gosto de pássaros e de ninhos. Olha, ontem vi um pica-pau, e tu, já viste um pica-pau? Coisas assim. Ele diz que já viu um cuco e eu não acredito – não acredito!... Então põe as mós a desandar e as lâminas da tesoura até fazem faíscas miudinhas. Um cuco?... Depois experimenta a tesoura num papel e depois experimenta a tesoura num pano, e diz: perfeita, como nova. E dou-lhe vinte escudos. Um cuco? Não acredito, era mais fácil ver aqui uma gaivota e estamos tão longe do mar. E ele: Nunca percas a esperança, Paulito, nunca percas a esperança. Porque um cuco e uma gaivota o que têm em comum são as asas e as asas levam-nos longe. Dá-me um apertão nas bochechas e vai-se embora a sorrir, empurrando a bicicleta ferrugenta, vagarosamente, e fazendo-se ouvir pela flauta de Pã. O som vai e vem, sobe e desce, parece que ondula.

Volto com a tesoura afiada e a minha avó nem precisa de a experimentar porque sabe que o amolador é de confiança. Ela fica contente porque uma costureira com uma tesoura que mastiga o pano é uma má costureira e ela e a tesoura afiada fazem maravilhas. Apenas ao domingo deixa a tesoura e a Singer em paz. Ao domingo vai à missa, comigo, e comparo-a a um corvo porque se veste toda de preto. Sapatos pretos. Meias pretas. Saia preta. Blusa preta. Camisola preta. Carteira preta. Lenço preto – a cobrir-lhe o cabelo preto... perdão... branco.

A minha avó é a número um do universo. Na página 80 do meu livro de leitura – olhem, precisamente a idade da minha avó – há uma lição que se chama «Tu és linda, minha avó!» e conta a história de uma avó que queimou as mãos para salvar o neto que dormia no berço. Ela não queria que o neto as visse, tão deformadas e cheias de cicatrizes estavam, mas o pequeno acaba por lhe dizer assim: «As tuas mãos são as mais belas do mundo!» As mãos da minha avó não têm queimaduras nem deformações, apenas a pele engelhada, e frieiras e calos da tesoura e picadelas de agulha quando se esquece de utilizar o dedal. Mas também as dela são as mais belas do mundo. São mesmo as mais belas do mundo!

Os meus pais morreram, foi a minha avó quem me criou. E não me posso queixar. A minha avó contou-me que, quando era nova, dividiam uma sardinha salgada para três, quando as havia, e que chegara a comer geros, beldroegas, folhas de papoila, labaças, cardos, grelos de saramago e outras ervas do campo. Também comias urtigas, vó?... Tamém. Quase não queria acreditar. Por isso, não – não me posso queixar. Tenho-a a ela e ela tem-me a mim. À minha avó só lhe falta uma coisa: um sorriso no rosto.

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sábado, 17 de outubro de 2009



O Homem Pássaro vai ao cinema


Durante a tarde de sábado, o homem dos filmes andara com a sua ruidosa furgoneta Hanomag e um altifalante ainda mais ruidoso a fazer reclame. «Hoje, às nove da noite, grandioso filme com John Wayne! Não perca! No Centro Recreativo, grandioso filme! Nãaao perca! Com Jooohn Wayne!»...
Era muito raro haver uma sessão de cinema na minha aldeia. Só de tempos a tempos aparecia o cinematógrafo, o homem dos filmes, e se propunha projectar um filme no Centro Recreativo. O homem dos filmes viajava de terra em terra, qual saltimbanco, a mostrar quase sempre fitas de índios e cowboys. Mas isso era sempre, também, uma festa. Da última vez estivera lá um ilusionista que fazia desaparecer pombas e hipnotizava as pessoas e punha-as a comer cebolas como quem come maçãs, no meio da gargalhada geral. Mário, o Mágico. E, no Natal, um grupo de malabaristas em avarias sobre rolos e cadeiras, uns cuspindo fogo, outros equilibrando pratos na ponta do nariz. Ninguém se queimou e prato nenhum se quebrou.
E assim, ao cair da noite, tomei banho na bacia de zinco, jantei, depois penteei-me durante meia hora e despejei quase o frasco de perfume da minha mãe em cima de mim. Não tinha a certeza se ela apareceria ou não no Centro Recreativo para assistir ao filme, mas, pelo sim pelo não, quis ir bem arranjado e perfumado como se fosse para a missa com a minha avó. O problema foi ter posto demasiado perfume, e ainda por cima de mulher. No momento senti-me uma perfumaria ambulante e até enjoado ao ponto de querer vomitar o jantar. Onde punha o nariz, lá estava o incontestável cheiro, a aura invisível que ia comigo para onde quer que eu fosse. Se tomasse banho uma outra vez... Talvez, indo para a rua, o vento levasse parte do perfume como faz ao alecrim e ao loureiro, como faz ao enxofre dos pinheiros, talvez o levasse para longe, o arrancasse da pele e da roupa e o disseminasse um pouco por toda a terra. Talvez o vento me ajudasse, como ajuda os pássaros a voarem. E o Homem Pássaro, onde estava? O meu outro eu era o Homem Pássaro. Precisava dele. Agora era o Homem Perfume Exagerado e tinha a certeza que afastaria todas as raparigas em vez de as atrair. Especialmente, claro, ela. O perfume de arroz-doce dela seria sorvido num ápice pelo meu perfume barato que só cheirava a perfume barato e nada mais. Todos os perfumes seriam sorvidos pelo meu, toda a gente me apontaria o dedo e toda a gente se divertiria à minha custa, sobretudo os meus colegas de escola, que iriam aparecer no Centro Recreativo de certeza absoluta.
Por isso, fui para o quintal e voei no lusco-fusco da noite, ao lado dos pirilampos e dos morcegos, que eu sabia não serem pássaros, como teimavam as velhas, nem ratos com asas, mas simplesmente morcegos, mamíferos voadores. De braços abertos, corri ao longo da horta da minha avó, torneei as couves-de-horto gigantes e, lá ao fundo, a figueira retorcida cheia de nós tentaculares. Quando cheguei ao ponto de partida, sustive a respiração e preparei-me mentalmente para me cheirar. Só depois é que me cheirei. O vento tinha-me ajudado, mas só um pouco, e dei outra volta igual. Quando regressei, achei que metade do perfume enjoativo já não estava em mim – estava espalhado pela escuridão, pela noite, pelas sombras, pelos ralos, pelos luze-cus, pelos morcegos e pelas couves da minha avó. O Homem Pássaro, que era eu, recolheu as asas, satisfeito, e virou as costas a tudo isso.
O cinema esperava-me.
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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Alcaçuz, alcaçuz!

As termas eram um lugar bonito. Havia palmeiras e outras grandes árvores que eu não sabia que se chamavam plátanos e castanheiros-da-índia, jardins de roseiras perfumadas, melros e rouxinóis. Em cada esquina uma fonte, ou um repuxo, ou quase isso, lagos com cisnes e peixes vermelhos, água saudavelmente espumosa a saltitar sobre rochas de musgo sedoso, pontes de madeira e muros de pedra antigos prenhes de fetos e avencas deslumbrantes. E mais água. Sempre água a escorrer.
Velhos, sobretudo velhos, passeavam-se ao sol arrastando os malefícios do corpo e da idade, ou bebiam água na buvette, servida por uma senhora de bata branca, ou faziam ginástica na piscina de água morna, ou recebiam jactos frios no corpo, na coluna vertebral e nas coxas. A minha avó fez tudo isso e eu cheguei mesmo a beber aquela água com borbulhas que saía de torneiras doiradas, servida pela senhora da bata branca. Meia hora depois vomitei – gomitei – o corredor de azulejos asseados e todos os velhos que por ali passaram me fizeram uma festa no cabelo para me reconfortar. Coitadinho!... Outros deram-me um aperto afectuoso nas bochechas. E uma velha muito sorridente, que falava francês, que todos os dias me dizia várias vezes bonjourbooonjouuur – ofereceu-me um bombom de alcaçuz que parecia uma mangueira preta enrolada. Uma corda preta. Uma cobra preta. Enrolada. Preta.
Alcaçuz, alcaçuz, antes comer caracóis crus!
Eu detestava aquele sabor, nem sequer sabia o que era. Dava-me mais vómitos. Gómitos... Dava-me voltas ao estômago. Ao estôgamo... No entanto, mastiguei o bombom até ao fim, contrariado, porque a velha madame estava sempre ali por perto a olhar para mim e a lançar-me uns sorrisos que me intimidavam.
Alcaçuz, alcaçuz, antes lamber pus!

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sábado, 1 de agosto de 2009

segunda-feira, 20 de julho de 2009




A minha Lua


Amanhecia. Via-se a lua ainda com um sorriso feliz de noite de pândega, branca e esburacada lembrando uma hóstia prestes a ser absorvida pela bocarra azul do mundo. Estava quase a tocar a muralha circular da Fórnea, diria que a escassos metros, e apetecia ir lá e mexer-lhe com as mãos. Divaguei. Lua, ó feiticeira lua... Estás tão longe e, no entanto, quase tocas a espinha dorsal desse dinossauro adormecido que é a montanha que enxergo da minha janela aberta aos pirilampos! Quantos segredos escondes tu com esse rosto de mica para me apetecer uma escalada e tocar-te com a mão, acariciar-te a face de sorriso angélico?... Se no teu lado mais escuro está um homem que corta silvas por castigo divino, então eu sou um extravagante lunático e Diana, embora caçadora de arco e flecha, matando corços e veados no bosque enluarado, é a minha deusa predilecta...
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quinta-feira, 16 de julho de 2009


Ópio?

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


(do Opiário, Álvaro de Campos)
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domingo, 12 de julho de 2009


Corre, miúdo, corre

Na minha infância, de facto, reconheço terem acontecido coisas impossíveis de lembrar, outras de que formo uma vaga ideia, e ainda outras claramente distintas.
Lembro-me particularmente das noites de trovoada e do mutismo da família, à espera de sabe-se lá o quê... A minha avó rezava.

Santa Bárbara bendita,
No céu está escrito
Entre a cruz e água benta;
Nos abrande esta trovoada
Para bem longe...

(Faço aqui um esforço de memória)

Onde não haja
Ovelha com cordeirinho,
Nem cabra com cabritinho,
Nem folha de figueira,
Nem nada que o Senhor queira!

Qualquer coisa assim. E também me lembro das outras noites, dos serões à volta da lareira, da casa cheia de fumo e os olhos a arder, a chorar por nada e por ninguém, e sempre e de novo as velhas, a minha avó, as irmãs da minha avó e as amigas da minha avó – essas velhas faladoras e bisbilhoteiras, eternamente com uma história para contar. Para elas, ou nelas, a língua seria a última parte do corpo a morrer, assim como a última a decompor-se. As velhas tinham sempre uma palavra a dizer, e mais isto e mais aquilo, e era assim e era assado, e foi fulano e foi sicrano... Os velhos não eram bem-bem assim. Os velhos fechavam-se na sua concha e a morte era esperada com paciência de Job, ainda que, talvez, com um sentimento de impotência e, por resultado, uma raiva muda. Elas, não; elas falavam, falavam sempre, mesmo que repetissem a mesmíssima coisa dúzias de vezes. Eram incansáveis. Eram imparáveis. Parecia-me que a única função que tinham no mundo era falar, e que a minha era ouvi-las. O espantoso era que elas, as velhas da minha infância, eram umas exímias contadoras de histórias – histórias fantásticas, do arco-da-velha!...
Nunca cheguei bem-bem a perceber por que carga de água elas nos contavam essas coisas de arrepiar. Mas nós, miúdos, gostávamos a valer. Eram histórias de pessoas com poderes estranhos e diabólicos, de espíritos e almas do outro mundo, cenas macabras que se passavam quase sempre à noite. Ficávamos a magicar, a tentar ver tudo isso com os nossos próprios olhos, embora assustados que nem ratos. Mesmo assim, gostávamos. E as velhas prosseguiam, inflexíveis, com aquele ar sabedor e experiente de quem diz que já passou por muitas atribulações na vida.
Mas, enfim, na minha infância, as histórias que me impressionaram sobremaneira e ficaram melhor gravadas no cérebro foram sem dúvida as histórias de lobisomens, ou, como nós dizíamos – como elas diziam –, belisomens.
As velhotas nunca nos contavam como eram realmente esses monstros. Porque, na verdade, também elas jamais viram fosse lá o que fosse. Daí que tivéssemos uma vaga ideia e os imaginássemos como homens que, à meia-noite e à lua cheia, inexplicavelmente, se transformavam em algo semelhante a lobos. Caminhavam de pé, tinham o corpo repleto de pêlos e cabelos, porventura ainda envergando roupas em farrapos, garras de lobo, dentes e colmilhos de lobo, talvez com laivos de espuma, talvez de sangue (conforme), olhos brilhantes e fendidos – uma cara feia, horrenda, ameaçadora – enfim, uma criatura metamorfoseada de um horror indescritível, deambulando e correndo no escuro da noite, à lua cheia, sequiosa de carne, sangue!... E também constava que, quando alguém se visse em apuros – embora, em rigor, isso jamais tivesse acontecido –, a única salvação era subir uma árvore e, aí, com um objecto afiado, tentar picar a besta até que se desse a metamorfose lobo-homem.
Homem-lobo. Lobo-homem. Lobosomem. Lobisomem.
Era arrepiante, medonho. Ficávamos a magicar coisas e loisas, aterrados, e na cama, à noite, jamais ousaríamos relancear os olhos pela janela. E quando os gatos, com cio, na rua, miavam como bebés a chorar desalmadamente, então nós, miúdos, encolhidos debaixo das mantas no frio de Janeiro, tornávamo-nos minúsculos, puros esfregões de medo, sem pinga de sangue, e não nos atrevíamos a abrir a boca, dizer: «Mãe!», dizer: «Mãe, tenho medo!» Talvez julgássemos que os bebés berravam por terem sido abandonados àquela hora da noite, e que estavam prestes a ser devorados, ou pelos lobos ou pelo lobisomem. Nesses momentos terríveis, o que queríamos ser era ser homens, porque os homens, regra geral, eram valentes e não tinham medo de nada. Pelo menos era essa a ideia que fazíamos deles, pelo que víamos ou pelo que eles próprios contavam. Depois, tínhamos sonhos que eram verdadeiras torturas psicológicas. O lobisomem, ou, vá lá, no mínimo o homem feio e mau, era um personagem quase constante do nosso fantástico mundo onírico. O papel dele era perseguir-nos, o nosso era fugir. Tínhamos sonhos que eram verdadeiras perseguições. Mas o monstro, porém, apanhava-nos. Embora nos escondêssemos bem, mesmo que nos escondêssemos em guarda-fatos, descobria-nos sempre. Talvez ele nos visse esconder, porque, inexplicavelmente, quanto mais dávamos às pernas, menos corríamos. Era como estar suspenso no ar e tentar correr; era como aqueles ciclistas que treinam sobre dois rolos, que se estafam a pedalar e estão sempre no mesmo sítio...
Mas entrementes fomos crescendo, crescendo, e, à medida que nos fazíamos rapazes crescidos, dávamos cada vez menos importância às histórias das velhas – no nosso lugar estavam outros miúdos, que cresceriam e que dariam lugar a outros miúdos... sempre assim. Talvez que, ao crescermos, não tivéssemos mais paciência para aturar as velhas; não, não tínhamos mesmo. As nossas aspirações eram agora outras: as raparigas. A atracção pelos belos cabelos de Preciosa. A fragrância da pele morena de Sara. A curiosidade pelo peito que ganhava forma de Maria... Também já não tínhamos mais a ocasião de estar ao pé das velhas e ouvir as suas histórias. Estas, porém, permaneciam em nós – permanecem –, porque a alma humana é uma arca bem funda onde se guardam todas as ninharias. Pode mesmo chegar a altura em que queremos deitar algumas fora, mas estão de tal modo ligadas a nós que não podemos, não conseguimos... E tornamos a fechar a arca e outro dia qualquer subiremos ao sótão... Sempre, sempre assim...
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quinta-feira, 2 de julho de 2009



Adeus, matemática!


Um dia sonhei que queimava todos os livros de matemática. Enquanto atirava um a um para a fogueira, feliz, comentava:
- O fogo é o melhor amigo do homem.
- Mas já não é o cão? – interveio uma voz.
- Não, não. O fogo foi, é e será sempre o melhor amigo do homem.
Os meus olhos brilhavam. Um fumo espesso e negro como tinta subia aos céus numa coluna ligeiramente helicoidal. Era um fumo de números e fórmulas, matemática que se evaporava, teoremas de Thales, Rolle, Cauchy e Lagrange, determinantes de Laplace, Rouché e Cramer, séries de Mengoli e Fourrier, critérios de d’Alembert e Leibnitz, matrizes de Cayley-Hamilton, funções de Taylor, derivadas dirigidas, vectores e espaços vectoriais, primitivas e integrais, primitivas imediatas e quase-imediatas, equações e inequações, referenciais cartesianos, radicais, coordenadas e abcissas, bissectrizes e meretrizes... perdão... mediatrizes... Eram visões claras de números, regras e fórmulas que se desquadrilhavam e rodopiavam ao sabor da brisa. Era a desordem e o caos da matemática. E eu sorria, feliz. A multiplicação de polinómios parecia-me, a mim, um poema vagabundo de Alberto Caeiro. O meu olhar é nítido como um girassol... E o binómio de Newton era a própria Vénus de Milo – sempre foi, aliás. Inúmeros sinais, o x, o y, o z, o n, alfa, beta, delta, maior, menor, igual, raiz quadrada, vectores u e v, todos eles andavam à solta tal qual estorninhos desnorteados. O sinal de infinito às vezes parecia uma serpente voadora, outras a máscara de Zorro. O pi assemelhava-se a um monumento sepulcral, uma anta pré-histórica que de repente tremia, tremia e logo se desmoronava em 3.1415926535897932384626433832795... – um número infinito de dígitos (que consegui memorizar melhor que Einstein), seguros como uma escada de corda das aventuras de Huckleberry Finn, a perder de vista pelo céu adentro, cada dígito um degrau, ou como uma incomensurável molécula de ADN em espiral. O teorema de Pitágoras, coitado, estava feito num oito. Senos, co-senos, tangentes e co-tangentes dispersavam-se sem sentido como cães vadios outrora ferozes, mas agora livres e mansos, dando à trigonometria um ar anárquico e poético, que me fascinava, antes de se sumir totalmente na vastidão do azul celeste. Aquele fogo era um fogo mágico que transformava a matemática em poesia, que deslumbrava como um colorido e surpreendente fogo-de-artifício, mas que, em vez de pingar e cair em repuxo, subia e desaparecia no céu. Fiquei de olhos esbugalhados, sabia que era o adeus aos números, às equações e à matemática em geral. A matemática morria e, enquanto isso, libertava-se do inferno e ia para o céu... Eu devia ser a pessoa mais feliz à superfície da Terra.
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quarta-feira, 1 de julho de 2009



A mão heptadáctila

No meu tempo de escola, ao toque da sineta seguia-se o quase silêncio, como se alguém fechasse a torneira do ruído. As vozes, os risos, os gritos ficavam presos nas gargantas à espera doutra oportunidade. Rapazes e raparigas entravam em fila conforme cordeiros de um rebanho e à entrada diziam «bom dia, Sra. Professora Balbina», ou «bom dia, Sra. Dona Balbina».
A Sra. Professora Balbina, ou a Sra. Dona Balbina, ou ainda a Sra. Professora Dona Balbina usava uns óculos grossos que lhe diminuíam os olhos perspicazes de coruja, como que vistos lá ao fundo num precipício, e o seu rosto magro fazia um V invertido desde o topo do nariz até aos cantos da boca. Era de porte esquelético e vestia sempre saias compridas que chegavam aos tornozelos. Velha, solteirona e feia, feia como a padeira de Aljubarrota, que diziam ser muito feia. Não sorria, nunca sorria, e era muito rígida e muito pontual. A sineta tocava sempre na hora exacta, nem mais nem menos um minuto. Quem chegasse atrasado era imediatamente posto de castigo ou brindado com uma tarefa difícil.
Mas o que mais assustava os alunos naquela Dona Balbina era a sua mão direita: não tinha cinco, nem seis, tinha sete dedos! Sete dedos!
Olhar uma mão assim produzia em nós um calafrio na espinha. Tinha o polegar, o indicador, o médio, o anelar, o mindinho e mais dois sem nome. Eu achava que se lhe podiam chamar o minúsculo e o minusculozinho. Sete dedos!

Miminho,
Seu vizinho,
Pai de todos,
Fura bolos,
Mata pulgas e piolhos!

Cinco dedos, cinco tarefas. E para os outros dois? Este recitativo que a minha avó me ensinou em criança não se podia aplicar a ela, pelo menos à mão direita. Um estalo com esta mão devia doer por dois ou três. Eu equiparava a professora com a famigerada padeira de Aljubarrota, que também supunha ter sete dedos. Mas isso era uma confusão minha. A Dona Brites de Almeida, mulher ossuda e muito feia, diziam, tinha seis dedos em cada mão e matou, isso sim, sete castelhanos, à pá, que se haviam escondido desnorteados e esfomeados dentro do seu forno, naquela tarde de Agosto de mil trezentos e oitenta e cinco. Sete castelhanos, sete dedos. A confusão estava no número sete.
A Dona Balbina não seria capaz de matar sete, nem cinco, nem dois, nem sequer um dos seus alunos, mas aquela mão direita desconforme e aberrante tinha sobre nós um poder excepcionalmente dissuasor. Sobretudo quando a erguia no ar fazendo ameaças disciplinares, ou agarrava com ela a vara de castanheiro, ou a grossa régua com mais de meio metro de comprido.
Como era possível uma professora ter sete dedos? Que utilidade tinham? Sete dedos dariam jeito a uma dactilógrafa, por exemplo, ou a um tocador de acordeão, a um pianista. Numa professora, era pavoroso. Devia ser proibido haver professores com sete dedos. Devia ser proibido haver Donas Balbinas. Esta Dona Balbina usava e abusava da sua mão, tinha consciência que era uma mão com poderes.
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domingo, 28 de junho de 2009



Another brick in the wall


Foi um momento mágico quando ouvi pela primeira vez este tema dos Pink Floyd. Tinha treze ou catorze primaveras, andava no terceiro ou no quarto ano do ciclo, naquele magnífico liceu de tijolo maciço e tijoleira rendilhada, antes de descermos para Porto de Mós, sobre o qual, ao cair da noite, corríamos e saltávamos como homens-aranha destemidos, eu e dois colegas. (Eu era o Homem-Aranhiço, pois era o mais pequeno dos três; depois seguia-se o Homem-Aranha e a seguir, mais corpulento, o Homem-Aranhão – era assim que nos tratávamos). Pois bem, por iniciativa da escola, tínhamos ido gratuitamente ao circo, se calhar o Cardinali, ou o Chen (se calhar nenhum destes, não me recordo), junto à velha central a carvão, e foi aí que, enquanto esperávamos pelos palhaços e os leões, a música passou, arrebatadora e arrasante, pelos meus ouvidos, vinda dumas colunas enormes a debitar decibéis como cataratas de som. Foi um momento fantástico e indescritível. Todos se levantaram das bancadas e, em coro, acompanharam ruidosamente, demolidoramente:
Hey teacher, leave us kids alone
All in all it’s just another brick in the wall...
Estranho lugar, este, o circo, para ouvir pela primeira vez aquilo que se tornaria o hino de uma geração! Aquele hey teacher dos meninos de coro da Islington Green School tocara-me profundamente, a mim, que ainda não me interessava nada por música e bandas de rock. Foi enfeitiçante e deixou-me sem palavras. Para além disso, enquanto todos cantavam euforicamente, deitava eu a vista a uma miúda de beleza e sorrisos divinais, de hipnotizantes olhos verdes, não muito longe de mim, mas nunca passou disso mesmo, porque eu era ainda o Lequinhas-tem-vergonha-das-meninas..., o aluno bom acima da média, mas tímido, ingénuo e, como sempre, singelamente imaturo... Bom, vi há dias a miúda – era ela de certeza absoluta –, já casada e com filhos atrás, larga de ancas, celulítica e pouco atraente. Mas a música, esse hino, ficou cá dentro, catapulta-me sempre para outros tempos e inunda-me de emoções.
Bravo, Roger Waters e companhia! “The Wall” é o melhor disco do século XX !
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domingo, 21 de junho de 2009




O Rui Herbon – notável Escritor –, no seu blogue Absinto ainutildeambulacaodaescrita.blogspot.com (isto não é publicidade…), decidiu atribuir-me o Prémio Lemniscata, o que é uma honra e um motivo para me esmerar mais no conteúdo.
















Alguns dados sobre o Prémio:
O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogues que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores.

Alguns significados:
Lemniscata: curva geométrica com a forma semelhante à de um 8; lugar geométrico dos pontos tais que o produto das distâncias a dois pontos fixos é constante.
Lemniscato: ornado de fitas; do grego lemniskos, do latim, lemniscu; fita que pendia das coroas de louro destinadas aos vencedores (in Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora).
O símbolo do infinito é um 8 deitado, em tudo semelhante a esta fita, que não tem interior nem exterior, tal como no anel de Möbius, que se percorre infinitamente.

Sendo assim, e dando seguimento às regras do jogo - que é atribuir o Prémio a outros sete blogues -, a minha escolha recai nos seguintes (estão por ordem alfabética):

- aescadadepenrose.blogspot.com (porque é do Rui Herbon)

- agavetadopaulo.blogspot.com (porque se chama Paulo e recebemos um prémio literário juntos)

- ainutildeambulacaodaescrita.blogspot.com (porque também é do Rui)

- comlivros-teresa.blogspot.com (porque tem livros)

- morreremmagenta.blogspot.com (porque me apetece)

- palavrasdecal.blogspot.com (porque sim)

- tantodemimrabiscos.blogspot.com (porque da sua janela vê o castelo)


terça-feira, 16 de junho de 2009

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O fim do nosso mundo...

Perto da casa do Toino tínhamos uma cabana em cima de uma árvore, primorosamente construída com varas de acácia, envolvida de heras que fizeram um belo trabalho de revestimento ao longo dos anos. Era lá que nos juntávamos para estudar matemática; o Toino dava-me explicações, e se tivesse que lhe pagar por isso, não teria dinheiro suficiente. Mas também nos juntávamos lá com o J. e outros colegas para jogar às cartas e outros jogos de rapazes. Havia lugar pelo menos para quatro ou cinco. Uma mesinha, bancos, prateleiras e, num esconderijo, uma apetecível garrafa de vinho do Porto (coisas do J., claro). O interior estava todo forrado com posters de bandas e ídolos musicais da época, tipo Human League, Depeche Mode, Alphaville, Frankie Goes to Hollywood, Orchestral Manoeuvres in the Dark e tantos outros, mas também The Smiths, The Cure, Duran Duran, Bryan Adams, Simple Minds e U2.
Já a mãe do Toino não tolerava muito bem esta decoração, porque dizia que aqueles grupos e aquela música eram coisa de malucos e uma cambada de drogados... Um dia, o J., que era fanático por carros de rally e Fórmula 1 e obcecado por mulheres bonitas, sobretudo se estivessem nuas, teve a brilhante ideia de arrancar todos aqueles posters (com a nossa conivência) e substituí-los por outros: ficámos literalmente rodeados por seios e traseiros luzidios. Silicone por todo o lado. Até no tecto. Recordo-me de uma Pamela Ander-qualquer-coisa... sim, essa!... que tinha uns belos faróis, segundo as palavras do J. Mas a mais surpreendente, de seios descomunais e ao mesmo tempo assombrosos, colada sobre as nossas cabeças como um peso ameaçador vindo dos céus, era uma tal senhora Lolo Ferrari. Credo! Silicone ou não, que perigo, que mamonas assassinas!... Para o J., já não eram faróis, eram airbags! Os airbags da Ferrari!...
Mas um belo dia, porém, a mãe do Toino descobriu que íamos para a cabana estudar matemática rodeados de voluptuosas e devassas mulheres nuas (salvo seja), e arrancou e queimou tudo – ohhh!... – como na fogueira da Inquisição! Ficámos proibidos de entrar na cabana em cima da árvore por muito e muito e muito tempo. Firme e decididamente.
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domingo, 14 de junho de 2009

Água fria

Calcei as minhas botas e saí para a rua como um animal sai da toca, após a longa hibernação. Devia ter os olhos inchados e os cabelos desgrenhados em pé, com ar de louco ou troglodita, mas não havia ali ninguém para me ver. Além disso, estava tudo imerso numa admirável massa nevoenta. O mundo era um oceano de nevoeiro opaco e branco. Uma folha de papel sem um único risco. Soube-me bem espreguiçar demoradamente e olhar tanta água a correr à minha frente. Ali, no riacho borbulhante e a fumegar vapor, parecia cozinhar-se um manjar de pedras, pedrinhas e pedregulhos.
Avancei, agachei-me e afundei as mãos na água. Tão bom, mexer na água fria, vê-la escorrer entre os dedos! A minha vontade era abrir as goelas e deixá-la entrar para dentro de mim, deixar entrar o riacho inteiro e senti-lo gorgolejar nas profundezas das entranhas, deixá-lo purificar e lavar a noite e a náusea da ressaca. Esfregando a cara, senti a barba áspera como lixa número dois, talvez três (pensei na bodega do armazém onde trabalhava), fechei os olhos e enfiei metade da cabeça na corrente de água límpida. Kerouac tinha razão. Não há no mundo sensação que se compare à de lavar a cara em água fria, de manhã, na montanha.
Mantive-me imerso até aguentar; quando retirei a cabeça, estava a Leandra ao pé de mim, envolta no saco-cama, a olhar-me estremunhada com uma careta de arrepio.
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domingo, 7 de junho de 2009

J.N.R.J.

A pouco e pouco entravam mulheres, crianças e alguns homens. Muitos destes ficavam na rua, sentados ao sol nos degraus do pelourinho, debaixo das árvores ou na taberna. A igreja deles era ali e o deus deles era líquido que escorria dos cascos de pinho para a garganta. As pessoas que iam entrando na igreja benziam-se na água benta das pias, à entrada, faziam a genuflexão com o sinal da cruz antes de se enfiarem em fila nos bancos únicos e compridos, ajoelhavam-se, faziam uma breve oração e depois sentavam-se em silêncio.
Em cada lado da igreja, um santo. Esses dois santos mantinham o ar andrajoso e empoeirado de sempre. Um segurava um livro e uma chave; o outro, um livro e uma caveira na palma da mão. Ambos tinham os olhos lisos e pareciam cegos. Assustavam. Mas a Nossa Senhora, vestida de azul e branco, tinha aspecto de lavada e cheirar bem. Heras verdes e tenras, malmequeres e gladíolos às cores escondiam-lhe o pedestal e quase a nuvem branca donde se erguia. Parecia que tinha chovido sobre ela uma chuva de Primavera. Parecia tão fresca. Parecia tão doce, que a minha vontade secreta era cheirá-la e lambê-la como a um chupa-chupa. Bebê-la como água pura da fonte. (Estava com sede e tinha a garganta seca). Aliás, se pudesse beberia todo o interior da igreja. A frescura da pedra. O branco bebível do azulejo. A luz. A luz que inundava a nave. A nave imensa onde podia imaginar pássaros a voar, andorinhas brincalhonas rasando a cabeça das pessoas e o corredor central onde quase tocavam com a ponta das asas.
Malmequeres e jarros de uma brancura imaculada enfeitavam o altar, onde uma almofada sustinha um grande livro de capa vermelha e folhas que reluziam como oiro. Duas velas de tamanho desmesurado, uma de cada lado do altar, ardiam silentemente. Se eu voltasse dali a um mês, ainda estariam a arder, era essa a impressão que tinha. Se voltasse dali a um ano, ainda estariam a arder. Se voltasse dali a um século, ainda estariam a arder.
Enquanto a missa não começava, eu bebia a frescura que flutuava no imenso espaço da nave, e aquele Jesus Cristo de tamanho natural, preso a uma cruz lá no alto, sobre o altar, não mexia uma palha para sair dali. De tanga a tapar-lhe o ventre, coroa de espinhos, rosto descaído, inclinado para a direita, a sangrar, joelhos a sangrar, o flanco também direito com um buraco também a sangrar, mãos e pés pregados na madeira. A sangrar. O corpo belo, musculoso, ossudo, estático, suspenso na sua própria agonia.
J.N.R.J. Sobre a cabeça. Jesus não ri... já... jé... ji... jó... ju... jamais.
Jesus Não Ri Jamais.
Jesus Não Recebe Jorna.
Jesus Não Come Jeleia.
Come não começava por erre. Nem geleia por jota.
Se Jesus fosse um Homem Pássaro, como eu, não teria deixado que o soldado romano lhe espetasse a lança no flanco direito. Ou teria? Nem sequer se teria deixado crucificar. Ou teria?... Fosse como fosse, aquele Jesus parecia-me bastante real. Ainda me recordava da primeira vez que entrei na igreja, já com essa idade dos porquês, e ter ficado intrigado e ao mesmo tempo assustado com aquele homem nu ali espetado na cruz. Num sussurro, perguntara à minha avó se era um homem verdadeiro e ela, noutro sussurro, respondera-me que sim. Sim, é um homem verdadeiro.
Durante toda a missa não despeguei de lá o olhar. Só mais tarde, algumas missas mais tarde, tive consciência que aquele homem, a sangrar e em agonia, era, afinal, uma estátua. De quê, não sabia – mas era uma estátua, e pude suspirar de alívio.
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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ao Homem Metade

Vou contar, muito resumidamente, a história do Homem Metade (era assim que o «tratava» quando pensava nele). Eu tinha onze anos e estava prestes a dar-se a revolução de Abril de 1974 quando passei a conviver mais assiduamente com ele, e não tenho memória alguma de quando ainda era um Homem Inteiro, normal como todos os homens.
O pai dele tinha uma carpintaria. Assim que lá entrava, o cheiro a árvores cortadas invadia-me os pulmões. Era um cheiro a bosques ceifados. Havia pilhas de madeira e montes de aparas por todo o sítio. O chão era de serradura, andava-se ali nas nuvens. Mas uma serra mecânica de lâmina longa, cheia de dentes, lá ao fundo, causava-me arrepios na espinha quando dividia tábuas em duas, muito perto das mãos que as seguravam. Essas mãos já não tinham alguns dedos. A todos os carpinteiros que eu conhecia faltavam-lhe dedos. Ou o polegar e o indicador, ou só a ponta do polegar e o indicador, ou o mindinho e o anelar. Ao pai do Homem Metade faltavam-lhe dois numa mão e a ponta do indicador noutra. Os que ainda sobravam eram quase todos redondos na ponta, como se a pele tivesse sido esticada e presa com pinças, e praticamente sem unhas. E a serra ceifa-dedos zunia ali tão perto deles, faminta. Não me aproximava muito.
Um dia, como sempre, perguntei pelo filho, o Homem Metade. Tinha, agora, mais confiança com ele e passava muito tempo a escutar as suas histórias. Tratava-o por tu. Às vezes falávamos de pássaros, dos de cá e dos que ele vira por África, e às vezes não falávamos de nada, ficava só a vê-lo colar os fósforos queimados, construindo as suas maquetas com muita paciência. O velho disse-me que o filho estava no lugar do costume, e o lugar do costume era uma casinhota nas traseiras da carpintaria, virada para um bosque em cuja clareira passava um riacho e onde as mulheres da aldeia lavavam a roupa em lajes de pedra. O Homem Metade passava lá dias inteiros, fechado.
Atravessei a carpintaria, os pés sempre sobre o tapete de serradura ancestral. Na casinhota, bati à porta e abri-a sem esperar pela voz de dentro. Era sempre assim que fazia. Entrei e eis o Homem Metade. O Homem Cadeira. O Homem Sem Pernas. O Homem Tronco. O Homem Meio-Homem. De qualquer modo, um Super-homem. Debruçado numa bancada cheia de ferramentas, bocados de madeiras e caixas vazias, colava fósforos na proa de uma caravela.
Lá vem a Nau Catrineta
Que traz muito que contar.
Ouvi agora, senhores
Uma história de pasmar.
Aproximei-me. O Homem Metade esteve três anos na Guiné. Foi para lá (ainda não era Metade) com vinte e cinco primaveras e voltou sem as duas pernas. As duas pernas inteiras, sem tirar nem pôr. Uma bazuca, numa emboscada, tinha-lhe traçado o destino. Oito colegas morreram. Guerra era guerra. Às vezes contava histórias horrendas. O melhor amigo morrera-lhe nas mãos, com os miolos a saírem pela nuca. Viu pessoas queimadas, trucidadas e completamente desfiguradas, sendo impossível reconhecê-las. Um dia cercaram uma aldeia e metralharam sobre tudo que se mexesse. Velhos, mulheres, crianças. Nem o capim ficara de pé. Estavam treinados para matar e estavam a servir a Pátria. Guerra era guerra. Mas agora a sua guerra era outra. Uma guerra surda contra o tempo. Sem as duas pernas, preso a uma cadeira de rodas, a sua guerra travava-se dentro daquela casinhota entre caixas de fósforos, colas e lixas, madeiras finas, pregos e martelos. O dia inteiro fechado. A caravela tomava forma com todos os detalhes. O Homem Metade, pouco falador, olheirento, a barba como um matagal a crescer, tinha jeito para aquilo. Em cima de mesas e prateleiras viam-se a Torre de Belém, o Santuário de Fátima, o Castelo de Porto de Mós, o Castelo de Leiria, o Mosteiro da Batalha e a igreja da aldeia. Tudo em fósforos queimados e com os devidos pormenores. Havia um carro de bombeiros. Uma locomotiva. Um hidroavião semelhante ao de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Bonito. E havia outras maquetas de monumentos que eu não reconhecia de lado nenhum. Perguntei-lhe se a caravela era a Nau Catrineta. E ele: sim, que podia ser.
Pela janela aberta entravam feixes de luz. Viam-se nuvens brancas que eram couves-flor semeadas pelo céu. Fui directo ao assunto que me levava, desta vez, ali: queria uma porção de cola de madeira. Que podia levar a que quisesse, mas era para quê, podia saber?... A ele, não podia mentir. Não era capaz de o fazer ao Homem Metade. Viver agarrado a uma cadeira de rodas para o resto da vida era já um castigo suficientemente grande. Dizer-lhe uma mentira, por mais insignificante que fosse, não fazia sentido. – Vou fazer umas asas – disse-lhe eu, orgulhoso. Era um segredo meu, mais ninguém sabia. Nem os meus colegas da escola.
- Umas asas? De papel, para brincar?
- Não, de penas, para voar como Ícaro – respondi, e o Homem Metade começou a rir-se e fez marcha atrás para alcançar um alicate. Cabeça, tronco e membros sem-membros. Só braços e calças vazias dobradas sobre o assento salpicado de aparas e lascas de fósforos. Eu não me estava a ver sem pernas. Nada de corridas, nada de bola, nada de trepar árvores, nada de nada. Se me chamassem para a guerra, fugiria antes que me ceifassem as pernas.
- Para voar? – o Homem Metade deixou de colar fósforos e fixou-me atentamente. – Sabes que quando tinha a tua idade também pensei nisso? É verdade. Fazer umas asas para voar. O meu sonho era poder voar. Como Ícaro.
- Eu vou fazê-lo – disse, convicto. – Vais ver!
- E vais atirar-te de onde, para poderes voar?
- Ainda não pensei nisso – eu olhava para as maquetas. – Talvez da torre da igreja.
- É o ponto mais alto da aldeia, de facto. Mas não te esqueças que quanto mais alto subires... mais alta é a queda.
- Não tenho medo das alturas – disse eu. – Quero ser aviador, quando for grande, e além disso vou fazer umas asas tão perfeitas como as de um pássaro.
- Vais ser o homem mais famoso da nossa aldeia... – o Homem Metade gozava comigo; entendia-o. Quando se é novo, com onze anos, todas as fantasias são permitidas. Ele também sonhara com aquilo. Voar. Agora todos os sonhos lhe estavam vedados. O mundo dele resumia-se ao que estava dentro da casinhota. E ao que conseguia ver de longe: largou a caravela, fez rodar a cadeira, tirou uns binóculos duma gaveta e dirigiu-se à janela: ficou assim demoradamente a olhar: lá para o fundo, para a clareira do bosque onde corria o riacho. Perguntei-lhe o que estava a ver. – Pássaros – respondeu, sem desviar os binóculos. Pedi se podia ver e ele, laconicamente, disse para eu esperar. Quando peguei nos binóculos, assestei-os lá para o fundo e procurei pássaros na copa das árvores. As árvores estavam muito próximas, muito folhosas, muito verdes, mas não havia pássaros. Se houvesse, estariam muito bem escondidos. Baixando as lentes para o riacho, vi, isso sim, três mulheres batendo com a roupa nas lajes. Não eram muito novas nem muito velhas, deviam ter a idade do Homem Metade. Tinham os pés na água e as pernas nuas até muito acima do joelho, a pele voluptuosamente clara e luzidia com os reflexos do sol. E voltei a procurar os pássaros. O Homem Metade regressara à Nau Catrineta e queimava mais uma caixa de fósforos. Tinha o silêncio como cúmplice. Não existiam palavras para a sua dor.
- Um dia vais emprestar-me os teus binóculos? – pedi eu; ele não disse nada. Colou mais um fósforo. Perguntei-lhe se já alguma vez tinha visto um cuco e continuei a espiolhar as árvores. Vi um melro do tamanho de uma águia. Tinha, no bico amarelo, uma minhoca do tamanho de uma cobra. O bicho a contorcer-se. E de repente desapareceu. Quando eu disse «estou a ver um melro», contentíssimo, já o pássaro tinha sumido.
- Sabes? Nunca vi um cuco. É por isso que quero viver nos bosques, e ficar à espera. Posso ganhar raízes, mas hei-de ver um cuco. Se me emprestares os binóculos, um dia destes – e ele, claro, emprestava-mos. – É mais interessante assim, vê-se tudo ao pormenor. Também posso ver como os pássaros constróem o ninho, como começam do nada com duas ou três palhas e o vão tornando redondo e fundo e forrado com penas macias e quentes. Não achas que os ninhos, em geral, são uma obra de arte? Eu acho. Depois é ver os ovos eclodirem e os filhotes crescerem de goelas no ar, e depois deixarem o ninho para darem o primeiro voo. Como é que um pássaro sabe que sabe voar? Já pensaste nisso?
O Homem Metade não estava ali. Corria por campos de papoilas e tremocilhas e trepava oliveiras em busca de ninhos. Enlaçava as pernas nos troncos mais compridos das árvores e subia como um macaco. Empoleirava-se e fazia equilíbrio nos ramos horizontais. Tinha onze ou doze anos, como eu… E a caravela à espera de fósforos.
- Mas já alguma vez viste um cuco? – insisti, arrumando os binóculos. O Homem Metade caiu em si. Não. Nunca tinha visto um cuco, se bem se lembrava. Em África vira aves de todas as cores e tamanhos, mas um cuco nunca tinha visto. Só ouvido o cucu ao longe, e a última vez fora há pouco tempo.
- Esse pássaro fascina-me, tem qualquer coisa de mítico. É como o Gigante Adamastor. – Não soube por que comparei o cuco ao gigante lendário de Camões. Talvez por causa da caravela de fósforos. Depois tirei duma barrica para uma lata a cola branca que precisava. Parecia leite espesso. O Homem Metade ainda me deu uma trincha. E agradeci e fui-me embora, porque tinha pressa de construir as minhas asas. Parti a pensar no Homem Metade. Era uma boa pessoa e dar-lhe-ia asas, no tal jogo imaginário que eu tinha: que era dar asas às pessoas boas, sendo eu – coisas de miúdos – o super-herói Homem Pássaro com super-poderes. Asas, pois, para o Homem Metade. As suas mãos faziam maravilhas. Aqueles monumentos todos, feitos com tanta paciência e dedicação, ao mais pequeno pormenor, janelas manuelinas, coruchéus e gárgulas fantásticas, a igreja da aldeia com os cata-ventos e todos os sinos, pequenos e grandes, no campanário. O hidroavião Lusitânia, que fez a travessia do oceano Atlântico de Portugal para o Brasil, pela primeira vez na história da Humanidade, por ares nunca dantes navegados, tinha todos os detalhes. Nem lhe faltavam as cruzes vermelhas da Ordem de Cristo. Ele era um verdadeiro artista, fazia obras de arte com as mãos.
E parti contente por tudo, pelos binóculos que um dia havia de levar, pela lata de cola, pela trincha e sobretudo pelas obras de arte do meu amigo da cadeira de rodas, mas não reparei que o deixara a chorar. Eu tinha onze anos, não podia reparar. As olheiras do Homem Metade tornaram-se lagos insalubres. Grossas e silenciosas lágrimas correram-lhe como rios para o matagal de pêlos da cara. Era sempre assim, soube mais tarde. O Homem Metade regressava à infância para correr pelos campos e ir aos ninhos e trepar as árvores. Longa e dolorosa viagem no tempo, essa. Eu não sabia metade da história. O Homem Metade dormia pouco, e quando dormia acordava sobressaltado com pesadelos que se passavam em África. Crianças negras sem rosto corriam para ele e traziam-lhe as pernas de volta, mas as pernas enchiam-se de vermes e apodreciam num instante. Então as crianças riam, mesmo sem rosto, e ele despejava-lhes tiros e tiros de metralhadora para se vingar da brincadeira de mau gosto. Acordava com suores frios e levava logo as mãos às pernas, mas elas não estavam lá. O pesadelo era quase sempre o mesmo. Também sonhava com o melhor amigo. Via sangue e miolos a escorrerem pelo corpo e o amigo dizia-lhe que estava no Inferno, pedia-lhe que o levasse para o Céu. O Céu estava muito, muito longe. Um bater de porta mais brusco deixava-o nervoso. Uma sirene de bombeiros também. Todos os ruídos fora do normal o faziam reviver a guerra. Um miúdo a correr deixava-o destroçado. A guerra continuava dentro dele. E assim a Nau Catrineta foi sacudida por violenta tempestade. A ira de Adamastor também existia ali, dentro da casinhota. Eu ainda não sabia metade da história.
Mas o Homem Metade, sendo ele, literalmente, metade de um homem, passou a ser para mim o exemplo máximo da coragem e da abnegação humanas. Como se deve imaginar, não cheguei a voar como Ícaro, nem sequer concluí «as minhas asas» de onze anos. Simplesmente, para o resto da vida, conhecer o Homem Metade... tornou-me diferente.
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