sexta-feira, 27 de novembro de 2009




Por favor, parem o Universo.
(Quero apear-me)


Sou nada. Sou pó.
Eu sei que sou pó, uma partícula de pó na imensidão infindável que se julga ser o Universo. Ergo os olhos e contemplo uma ínfima parte dele e este meu pedido – por favor, parem o Universo – parece-me ridículo, e direi até idiota. Mas, indo bem ao âmago das coisas, será que é ridículo, será que é assim tão idiota? Uma partícula de pó e mais uma e mais uma, e ainda outra e outra e outra… juntando-se formarão um grão de areia. Uma mão-cheia de grãos de areia formarão uma pequena pedra, e um punhado de pedras juntas comporão um rochedo. Vistas bem as coisas, não é a Terra um conjunto de rochedos que gira em torno de si próprio? Não é a Terra o terceiro rochedo a contar do Sol? Não é a Terra, também ela, um universo de grãos, de partículas de pó?
Eu sei que sou pó, uma partícula de pó, e faço parte da Terra e, fazendo parte dela, faço também parte do Universo. Não, não é assim tão ridículo, não é assim tão idiota. Estou agora convencido que faz todo o sentido reflectir por um instante e bradar com todo o alento do peito: por favor, parem o Universo!
Embarcámos numa viagem alucinante. Para onde vamos? Viajamos numa locomotiva sem destino. Para consolidar a minha ideia não preciso regressar muito no tempo. A minha memória está tão fresca ainda. O meu corpo sente a dor ainda tão acutilante debaixo da pele. As minhas mãos não conseguem repelir o medo que se estampa no rosto. Os meus olhos nada mais reflectem que o pavor do amanhã.
Vou então regressar no tempo.
Naquele fatídico seis de Agosto de mil novecentos e quarenta e cinco, a primeira bomba atómica caía sobre a cidade de Hiroshima. O cogumelo mortífero aniquilou milhares de pessoas e animais, arrasando edifícios e ruas, reduzindo a cidade a escombros e pó. Nada mais do que pó. Só me recordo de olhar, muito de longe, a gigante bola de fogo e cegar instantaneamente. Não sei se morri. Provavelmente…
Lembram-se daquela fotografia onde um grupo de miúdos de todas as idades e de olhares apagados esperava por um comboio sinistro? Aquele de calções e boné e um casaco com uma estrela de David estampada era eu. Eu tinha um ar traquina, não tinha? Mas não íamos para a escola, nem para nenhuma festa, nem para nenhum espectáculo de circo. Não sabíamos sequer para onde íamos. Na verdade, fomos para Auschwitz, fazendo uma terrível viagem num vagão de carga durante inúmeros dias, e quando lá chegámos mandaram-nos logo para um estranho pavilhão com cheiro a gás. Como bem me lembro desse odor! Éramos tantas, tantas crianças! Éramos um recreio de crianças! E os idosos e as pessoas doentes fizeram-nos companhia, instigados pelas baionetas ameaçadoras dos soldados. A partir daqui não me lembro de mais nada…
Agora mostro-vos outra fotografia. Esta menina nua, correndo aterrorizada de braços abertos pela estrada fora, também sou eu. Naquele momento só queria a minha mãe, o meu pai… Eu era vietnamita e tinham acabado de cair algumas toneladas de bombas perto da minha aldeia. Os homens de metralhadora vinham atrás e nós, crianças, corríamos como num pesadelo confuso. Nunca percebi por que estava ali, a chorar e a correr, nua, naquele dia tão gelado e triste.
E agora levo-os até África, para um daqueles campos de refugiados onde homens, mulheres e crianças se amontoam como exércitos de esqueletos humanos. Esqueletos inverosímeis que andam, abrem e fecham os olhos tristes e estendem as gamelas vazias. Esse rapaz de ventre inchado, e cujos ossos salientes se podem contar um a um, sou eu. Não sonho com brinquedos; nunca soube o que era isso. Os meus sonhos estão povoados de abutres que me perseguem pacientemente. Não são sonhos: são pesadelos.
Em Angola pisei uma mina. Vinha da escola e saí do caminho habitual. Depois de tantos anos de guerra e sofrimento, olhem o que me havia de calhar. Agora uso uma muleta, aqui não há dinheiro para próteses ou sei lá como chamam a essas pernas artificiais. Aquilo que eu mais gostava de fazer – jogar à bola – ficou enterrado para sempre na minha infância.
Numa esplanada de Jerusalém, eu e a minha mãe bebíamos limonada e ríamos já nem me lembro de quê. De repente, um autocarro desnorteado abalroa automóveis e pessoas e vem direito a nós como um animal cego e feroz, conduzido por um louco suicida. Explodiu. E espalhou corpos e sangue por todos os cantos. O meu. O da minha mãe. O nosso corpo. O nosso sangue.
No dia seguinte, os chefes do meu país mandaram atacar o outro lado. Ainda não existia esse muro. Imensas casas foram destruídas por bombardeamentos e pelos bulldozers. Aquela criança empoeirada e hirta e defunta que passa de mão em mão, qual bandeira destroçada, sobre as cabeças duma multidão de palestinianos furiosos era eu. Incompreensivelmente, era eu tanto do lado de cá como do lado de lá. Que tipo de cegueira orienta os homens? Será o ódio aquilo que lhes acende a alma? Não haverá mais nada nos seus corações?
Nos arredores de Sarajevo fuzilaram a minha família. Vi tudo pela janela do velho palheiro. Nem o Mik escapou. O Mik era o meu cão. O Mik era o meu melhor amigo. Até a minha bicicleta foi esmagada por um carro blindado. Foi um dia muito triste na minha vida.
E eu nem queria falar do Iraque. O Iraque é agora um país de viúvas e órfãos. Não há hospitais, não há escolas, não há nada. Há ruínas, há fome, há sangue todos os dias. Devem estar lembrados daquele miúdo sem pernas nem braços, envolto de ligaduras como uma múmia viva, que passou nos noticiários da noite. Aquele miúdo era eu. Sim, também. Pois eu vos digo: se existe inferno, o Iraque é o inferno.
Podia falar-vos de outros horrores. Dos meninos soldados. Podia falar-vos do Afeganistão. Podia falar-vos do onze de Setembro e das Torres Gémeas, mas não posso nem quero. Também lá estava. Na verdade, sinto que estou a ser demasiado cruel, trazendo-vos à memória o que não devia ser memorável.
Podia ainda falar-vos dos petroleiros e das marés negras, dos massacres de baleias, das florestas tropicais, dos índios escorraçados, dos que não têm terra, do efeito de estufa e do aquecimento global… mas quero deter-me. Sou nada, sou pó, porém quero reiterar o meu pedido: talvez ainda seja possível dar-lhe um outro rumo: Por favor, parem o Universo. Parem as estrelas, as luas, os planetas. A Terra. Para onde vamos? Parem esse comboio. Quero apear-me desta viagem.
Vou dizer-vos um segredo. Parece infantil, mas não é. O que quero mesmo é regressar ao colo da minha mãe. Não. O que quero mesmo é regressar ao ventre da minha mãe. Quero estar nesse quentinho líquido amniótico que nos embala docemente. Podem não acreditar, mas recordo como era estar nessa suspensão de felicidade. Era como fazia quando criança: fechava os olhos com o rosto na direcção do sol e sentia o calor nas pálpebras e tudo em volta era um espelho de tons alaranjados. Tal qual como estou a fazer agora, fechei os olhos para regressar à minha mãe. Estou nesse quentinho líquido de todos os sonhos e de todas as esperanças. Estou bem aqui. Sim, estou tão bem aqui!
Por favor, parem o Universo.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009



Esta é para António Sérgio!
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domingo, 1 de novembro de 2009

Redacção

A minha avó e eu


A minha avó tem sempre muito que fazer e ainda por cima é costureira. É na época das festas e nos casamentos que ela tem mais trabalho. Tem de acabar as roupas para o dia que lhe pedem e muitas vezes isso não acontece e as pessoas zangam-se com ela, mas acaba sempre tudo como deve ser. Ao pagarem, as pessoas acham um bocado caro, pois não calculam o trabalho despendido, os serões gastos a pedalar na sua Singer, tão velha quanto ela, e os materiais necessários para confeccionar um vestido ou um par de calças. Apesar de tudo, vem gente de muito longe encomendar-lhe roupa por medida e acham-na uma muito boa costureira. Vivemos aqui, nesta aldeia distante de tudo. Mas eu acho que é a melhor de Portugal. Eu acho mesmo que é a melhor do Mundo!

As mãos da minha avó são mágicas. Ela faz tudo com elas. De um pano de fazenda, traça uns riscos com giz ou com um pedaço seco de sabão azul, mede aqui e mede ali com a fita de costura, prega uns alfinetes nos sítios certos, alinhava em baixo e cose em cima e está um par de calças pronto na perfeição e o cliente com um sorriso nos lábios. Para um vestido complicado com muitos folhos e laços e lacinhos é a mesma coisa. À primeira prova bate tudo certo, quase nunca é preciso emendar seja o que for e as pessoas ficam contentes. Ela nunca fez um vestido de noiva, mas eu tenho a certeza que ela não teria problema nenhum em fazê-lo, assim com imensos folhos e imensas rendas e uma cauda muito comprida para arrastar pelo chão. Eu daria um braço – sim, daria um braço – em como uma princesa qualquer ficaria satisfeita se mandasse confeccionar à minha avó o seu vestido de gala. Neste caso, teria era de trazer os tecidos e as rendas e os tules e o tafetá e as pérolas do seu país, porque devem ser materiais caríssimos para uma princesa.

A minha avó é muito habilidosa e faz coisas espantosas com as mãos. Além dos vestidos lindíssimos, com folhos, sem folhos, com balões, sem balões, com laços, sem laços, de Primavera e de Verão, além das calças e dos calções, das batas e das blusas, das saias e dos casacos, é ela que também costuma fazer grande parte dos enfeites para as festas da nossa aldeia. Ela e a tesoura têm uma relação muito estreita, de profundo entendimento. A tesoura faz parte da mão direita da minha avó. Ela dobra várias vezes o papel colorido e faz fitas com recortes de estrelas e flores e inúmeras figuras geométricas de uma imaginação e um efeito surpreendentes. As pessoas que as colam com cola de farinha nos cordéis em ziguezague ao longo das ruas ficam de boca aberta. E os balões? Os balões ficam tão bonitos como cachos de glicínias. Aqueles rendilhados entrecruzados de várias cores são de um capricho e um fascínio que baralham a cabeça de qualquer pessoa e ficamos a pensar: como é que isto se faz? Como é que alguém consegue fazer uma coisa assim? Às vezes penso que é uma pena ver aqueles balões deslumbrantes estragarem-se pendurados ao vento ou à chuva, porque são verdadeiras obras de arte que duram poucos dias.

É: as mãos da minha avó são mágicas, fazem maravilhas. Ela e a tesoura fazem milagres e a tesoura tem tanto uso que às vezes, em vez de cortar, mastiga. É aí que entra o amolador de tesouras, que de quando em quando passa pela nossa aldeia. Vagaroso, vem na sua bicicleta, uma pasteleira ferrugenta com a caixa das mós atrás, e não amola só tesouras e facas, também conserta chapéus de chuva e põe gatos nos alguidares de barro rachados. Vai tocando a sua flauta de Pã pelas ruas, para chamar a atenção do povo. O capador de porcos também tem uma, mas não combina nada com o seu tipo de ofício: uma vez vi-o capar um porco e logo a seguir comer os testículos do pobre animal assados com sal e vinagre nas brasas. E o porco a ver, coitado!... O amola tesouras é mais romântico, apesar de me parecer tão velho quanto a minha avó. O som da sua flauta de Pã é muito singular, parece que ondula para a frente e depois regressa ao ponto de partida e fica no ouvido como uma melodia do paraíso. Eu vou logo a correr e mando-o parar, depois trago-lhe a tesoura da minha avó, que já não corta, mas mastiga. O amolador já me conhece desde miúdo e faz-me brincadeiras do género: orelha, telha ou puxelha? E eu baralho-me sempre e digo telha ou digo puxelha e ele puxa-me as orelhas para cima ou para a frente, respectivamente. Ou outra assim: de quem é esta cara? Ele aponta para perto do meu nariz, eu devo responder que é dele, mas também me engano sempre e respondo que é minha e então ele puxa-me o nariz, dizendo: se é tua, para que serve este marco?...

O amola tesouras é muito divertido e muito simpático e até me trata por Paulito. Então, Paulito, já tens muitos ninhos? Ele sabe que eu gosto de pássaros e de ninhos. Olha, ontem vi um pica-pau, e tu, já viste um pica-pau? Coisas assim. Ele diz que já viu um cuco e eu não acredito – não acredito!... Então põe as mós a desandar e as lâminas da tesoura até fazem faíscas miudinhas. Um cuco?... Depois experimenta a tesoura num papel e depois experimenta a tesoura num pano, e diz: perfeita, como nova. E dou-lhe vinte escudos. Um cuco? Não acredito, era mais fácil ver aqui uma gaivota e estamos tão longe do mar. E ele: Nunca percas a esperança, Paulito, nunca percas a esperança. Porque um cuco e uma gaivota o que têm em comum são as asas e as asas levam-nos longe. Dá-me um apertão nas bochechas e vai-se embora a sorrir, empurrando a bicicleta ferrugenta, vagarosamente, e fazendo-se ouvir pela flauta de Pã. O som vai e vem, sobe e desce, parece que ondula.

Volto com a tesoura afiada e a minha avó nem precisa de a experimentar porque sabe que o amolador é de confiança. Ela fica contente porque uma costureira com uma tesoura que mastiga o pano é uma má costureira e ela e a tesoura afiada fazem maravilhas. Apenas ao domingo deixa a tesoura e a Singer em paz. Ao domingo vai à missa, comigo, e comparo-a a um corvo porque se veste toda de preto. Sapatos pretos. Meias pretas. Saia preta. Blusa preta. Camisola preta. Carteira preta. Lenço preto – a cobrir-lhe o cabelo preto... perdão... branco.

A minha avó é a número um do universo. Na página 80 do meu livro de leitura – olhem, precisamente a idade da minha avó – há uma lição que se chama «Tu és linda, minha avó!» e conta a história de uma avó que queimou as mãos para salvar o neto que dormia no berço. Ela não queria que o neto as visse, tão deformadas e cheias de cicatrizes estavam, mas o pequeno acaba por lhe dizer assim: «As tuas mãos são as mais belas do mundo!» As mãos da minha avó não têm queimaduras nem deformações, apenas a pele engelhada, e frieiras e calos da tesoura e picadelas de agulha quando se esquece de utilizar o dedal. Mas também as dela são as mais belas do mundo. São mesmo as mais belas do mundo!

Os meus pais morreram, foi a minha avó quem me criou. E não me posso queixar. A minha avó contou-me que, quando era nova, dividiam uma sardinha salgada para três, quando as havia, e que chegara a comer geros, beldroegas, folhas de papoila, labaças, cardos, grelos de saramago e outras ervas do campo. Também comias urtigas, vó?... Tamém. Quase não queria acreditar. Por isso, não – não me posso queixar. Tenho-a a ela e ela tem-me a mim. À minha avó só lhe falta uma coisa: um sorriso no rosto.

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